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Avaliação de Perfis

02/01/2019

A perda da dignidade

A promotora de justiça Silvia Regina Becker Pinto, aclamada como heroína nas redes sociais, afirma que a regeneração de quem pratica o mal é improvável 

Eu não posso admitir que alguém invoque os direitos humanos quando essa mesma pessoa não teve compaixão alguma para com a vítima. Quem mata, assalta, não vê no outro seu semelhante. Como eu vou tratar como ser humano aquele que desrespeita essa condição no outro?

* Polêmica a define. Aos 50 anos, Silvia Regina Becker Pinto, que atua como titular da Promotoria Criminal de Caxias do Sul desde 2008, faz largo uso das redes sociais para comentar os casos em que atua. Ali, ela não esconde a satisfação em colocar alguém atrás das grades. A promotora, que nunca fez um júri como advogada de defesa, já perdeu as contas de quantas condenações promoveu. Apesar de considerar-se durona, Silvia faz questão de ressaltar sua feminilidade, marcada pelos vários modelos de sapatos de salto alto que usa, inclusive, para ir ao tribunal. Entenda porque a doutora em Ciências Jurídico-Políticas acredita tanto na punição como defesa da comunidade contra o crime.

NOI: Por que ser promotora de Justiça?

Silvia Regina Becker Pinto: Depois de formada montei um escritório e atuei durante dez anos como advogada de causas cíveis. Apesar de muito bem sucedida, mas nunca fui marqueteira. Entrei no Ministério Público com 34 anos. Eu já não tinha a pretensão de ficar rica com a advocacia. Optei pela estabilidade financeira.

Muito difícil passar no concurso a essas alturas?

Fiz um esquema de estudo, tive muito apoio da família e do meu marido, com quem comecei a namorar aos 13 anos e casei aos 19.  Na época meus filhos eram pequenos, não podiam ficar me incomodando. Então nos fins de semana ele assumia e eu estudava. Não parei de trabalhar. Levantava bem cedo, estudava duas horas, trabalhava, depois do expediente voltava a estudar. O concurso do MP tinha cinco fazes: prova objetiva, subjetiva, prova oral, prova de tribuna, prova de títulos. Depois precisava apresentar também atestado de saúde (mental, física e dentária), bem como realizar o exame com um oculista. O processo seletivo do qual participei começou com 2.280 candidatos. Da primeira peneira, passaram 504, inclusive eu. Como eu estava muito distante do direito penal, sempre focada no civil, comecei a fazer um curso preparatório de três meses em Porto Alegre. Ia todas as noites para POA na companhia ou da minha mãe ou da empregada que se revezavam, iam junto e assistiam a aula, para que eu não precisasse voltar sozinha. Desses 504, ficaram 103. Na prova oral sobraram 54. Fiquei em oitavo lugar e em quarto na nota da Tribuna.  

O que é promover Justiça?

Ter comprometimento com o processo tanto na sua instrução quanto no estudo. Pedir a condenação quando me convenço que o réu é culpado, pedir absolvição quando me convenço que ele é inocente e pedir também absolvição quando tenho dúvidas. Se eu tinha uma impressão e no decorrer da produção das provas percebo algo diferente, eu devo ser flexível. Produzir justiça é observar se a aplicação da pena esteve condizente com o crime praticado. Nem todo o crime é igualmente gravoso. Existem condutadas mais ou menos repugnantes. Depois que eu fiz tudo isso eu posso deitar minha cabeça no travesseiro tranquila, porque fiz Justiça.

Em 2012 o Tribunal de Justiça aceitou uma denúncia contra você, pelo suposto favorecimento de seu filho, advogado de defesa em um processo.  Isso maculou a sua carreira?

Trabalhei sete anos em Novo Hamburgo e tinha atribuições na área de improbidade administrativa. Ali, fui vítima de uma armação política. O clima ficou péssimo, não tinha mais condições de trabalhar. Entrei em contato com uma colega que queria sair de Caxias. Fizemos uma permuta e trocamos de lugar.

Você comenta muito sobre os casos que atua nas redes sociais. Por que compartilhar dessa forma detalhes do teu trabalho?

Eu gosto de divulgar. As pessoas se sentem seguras ao acompanhar a minha atuação. A única pessoa que poderia ser prejudicada com isso seria eu, por uma questão de segurança. Sou muito ameaçada. Quando atuamos no júri, lidamos com familiares, amigos do réu, parentes da vítimas, todo mundo assistindo. As pessoas às vezes não sabem separar a promotora da Silvia, e isso cria inimizade. Grande parte dos meus amigos de rede social tem alguma implicação com o Direito. Ou são da polícia, da Brigada, ou advogados, promotores...

Você costuma colocar algumas fotos de vítimas dos crimes, ou de bandidos mortos pela polícia. Qual é o seu intuito em revelar essas imagens?

Uma única vez na minha vida coloquei uma foto de vítima, de um homem que teve o rosto arrancado. Eu queria chocar! As pessoas precisam se dar conta do tamanho da maldade humana! Da necessidade urgente de rever a legislação penal. Tu pensa, e se aquilo fosse um filho teu? Aual a pena para isso? Aquele réu acho que levou 18 anos. Se cumprir 1/6, dá três anos. Tu pensa alguém fazer algo assim ficar preso três anos e depois voltar para a rua. Depois de cumprir 1/3, recebe livramento condicional. Me diga se isso não instiga as pessoas à vingança privada! Uma vez eu vi uma mãe de uma vítima de homicídio falar frente a frente com uma juíza: “Se a senhora não fizer Justiça, eu farei!”. Claro, pois com essas penas nem a retribuição do mal pelo mal é alcançada. Ressocialização não existe, é utopia. Para exemplaridade uma pena dessa também não serve...

Ainda nas redes, percebe-se que você é muito aclamada quando consegue uma condenação. Prender alguém é uma vitória para você?

As pessoas perguntam, de todos os juris que eu já fiz, quantos eu ganhei. Ganhei todos! Eu estudo muito bem meus casos. Quando eu vou lá pra frente, exponho minha tese. Busco convencer com bons argumentos. A responsabilidade não é minha de culpar e inocentar. Peço absolvição, desclassificação ou sustento acusação quando entendo que esse é o caso. Ou seja, eu não sou promotora de acusação e sim de Justiça. As pessoas me admiram porque sou uma efetiva defensora aguerrida. Sou alguém em quem eles podem confiar. Sou instrumento para realizar o que eles gostariam que acontecesse. Eu vou lá, faço e digo do jeito que eles gostariam.

Recentemente você condenou dois assassinos de um homem e duas crianças, um dos crimes de maior repercussão na Serra Gaúcha. Mas a senhora também promoveu o arquivamento do caso da Idosa que matou um assaltante...

Sou totalmente intolerante com o crime. Hoje, se faz uma leitura muito caótica e até unilateral do que vem a ser humanidade, do que vem a ser diretos humanos. Parece que os direitos humanos são só os direitos de defesa do acusado com nenhum enfoque nos direitos da vítima. Só que o direito de defesa é consagrado na Constituição Federal como direito e garantia fundamental, ou seja, está no topo dos direitos. Assim como a segurança, o direito a vida, a integridade psíquica. Não podemos considerar que só o réu é destinatário de direito fundamentais. As vitimas também são. Defendo complacência com quem merece e irredutibilidade com quem não merece.

Você não acredita que um criminoso possa se recuperar?

Eu sou Kantiana. A condição de pessoa é um legado do cristianismo. Kant acrescentou a tudo isso um elemento ético. Ele dizia que as pessoas têm dignidade porque não podem ser trocadas por valores. O ser humano não pode ser um meio, ele é um fim e um fim em si mesmo. Essa é a referência de dignidade da pessoa humana. Kant pensava que quando uma pessoa pratica um crime dessa envergadura, por exemplo, matar um semelhante, ela abre mão da própria condição humana. Eu concordo com isso.

A solução então seria a pena de morte?

Eu não tenho pena de bandido. Eu não tenho pena. Aliás eu quero que seja aplicada a ele a pena ajusta pena. Se eu pudesse eu apelaria a pena de morte. Não peço porque não posso. Os assassinos que mataram o empresário e as crianças na Sexta Légua por exemplo. Em qualquer pais sério eles nunca mais veriam a luz do dia. Assim como os culpados do caso Nardoni.

Não há nenhum caminho para o resgate da humanidade desses criminosos?

Acho que em alguns casos as pessoas podem se regenerar. Em outros, a maldade vem registrada no DNA. Como nesse caso do triplo homicídio. É um caso típico de psicopatia. Não tem tratamento ou ressocialização em ambiente externo que mude essa perspicácia. Por que razão as pessoas permitem que o Estado dite as penas? Thomas Hobbes diz que o homem em estado de natureza é mau. Quando convive em sociedade ele entrega nas mãos do Estado toda a sua liberdade. Em estado de natureza haveria um estado de guerra de todos contra todos. O homem é o lobo do homem. Eu acho que Hobbes em parte tinha razão. Alguns homens em estado de natureza são maus. Alguns são acolhidos em ambiente que faz com que essa maldade possa ser contida, minimizada e eliminada. E alguns dos homens maus, mesmo que estejam em um ambiente favorável, conservam a maldade e levam isso para todo mundo. Nesses casos  não tem solução, nem na prisão.

Você sempre teve um bom relacionamento coma polícia e a Brigada Militar. Você acredita que o Ministério Público também tem que investigar?

Em todo país sério o Ministério Público tem poder investigatório. É neste sentido que estamos nos direcionando, para que o MP tenha mais estrutura e também mais orientação, além de mais qualificação profissional para isso. Deveríamos buscar união com as polícias e não disputa. Precisamos conceber a ideia de um grupo de combate ao crime, principalmente o organizado. O crime se organiza e o Estado se desorganiza. Temos que nos unir para que tenhamos o mínimo de eficácia...

O impulso de investigar surge porque a polícia não é competente o bastante?

A Brigada não investiga mais porque não tem estrutura. Eu quero uma Polícia Civil competente, identificada e aparelhada. As vezes no júri perguntam, “a não foi feito tal procedimento”? Estamos muito distantes do ideal! Certas coisas não funcionam aqui! Eu acho que o trabalho de investigação do Ministério Público tem que ser reservado para os flancos, quando a polícia tem dificuldade, ou quando há foco de corrupção dentro da polícia, quando falta estrutura e aparelhamento. Para explicar melhor, eu fui fazer uma inspeção na primeira delegacia de polícia de Caxias do Sul. Sabe o que é não ter fechadura numa porta? Puxam com uma cordinha que engembraram como fechadura. Como eu posso pensar em estrutura investigatória se não tem nem fechadura na delegacia de polícia?

Qual a origem de tanta insegurança?

Quando tu pega uma pessoa com antecedente criminal que tem até dez assaltos registrados tu fica pensando, será que essa criatura foi pega em todos os crimes que praticou? Claro que não. Temos razoáveis razões para acreditar que ele realizou inúmeros assaltos que ninguém ficou sabendo. Ou ele deu azar de nos nove delitos ser pego? Existe uma realidade oculta que ninguém registra. Por pouca coisa ninguém vai à polícia....

Apesar de ser “durona”, por que você gosta tanto de destacar tua feminilidade?

Sempre procuro fazer o júri de toga. Uma vez fui de casaco rosa pink na gola. Os advogados de defesa disseram que não adiantaria ficar de rosa, porque da cintura para baixo é tudo canela. Depois de conseguir a condenação do réu, dei beijinho no ombro e disse: queridos, vocês se esqueceram de proteger as canelas! Eu sou assim mesmo durona, mas não deixo de ser mulher e de gostar de coisas de mulher. Posto foto de sapatos de salto alto, acessórios, é tudo comigo! Para os bons o meu lado bom para os bandidos os outros meus outros posts...

Trajetória: Silvia Regina Becker Pinto é natural de Novo Hamburgo, onde nasceu em 20 de novembro de 1963. Silvia é graduada em Direito pela Unisinos, especializada em Processo Civil pela PUC e Doutora em Ciências Jurídicas e Políticas pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Começou a carreira de promotora aos 34 anos em Sapiranga, onde atuou durante quatro anos. Depois mudou-se para Novo Hamburgo, onde permaneceu por sete anos. Por meio de permuta, começou a atuar em Caxias do Sul em 2008. Silvia é casada há 32 anos (desde 1982) com Fernando Resende de Melo Pinto, com quem namora desde os 13. A Doutora tem dois filhos (de 31 e 29 anos) que também têm formação em Direito. 

 

* Entrevista de Caroline Pierosan publicada na revista NOI de julho de 2014