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Avaliação de Perfis

17/07/2019

Como Resgatar o Futuro?

O que fazer com crianças e adolescentes, autores ou vítimas de violência?

"O mal vem da dor. A pena pura e simples não resolve, as pessoas precisam de ajuda" Suely Rech

Suely Rech conduziu o registro de quase 35 mil ocorrências ao longo de mais de uma década  (2002 – 2014) à frente da Delegacia de Proteção à Criança e ao Adolescente (DPCA) de Caxias do Sul. Muito além de um trabalho, sua missão se impôs inerente à responsabilidade de delegada, já que sempre teve oportunidade de marcar vidas. O número não representa a quantidade exata de pessoas que “a delegada Suely” – como é conhecida - influenciou determinantemente. A seguir ela defende a importância de se reconhecer nas situações violentas o pedido de socorro de um futuro que precisa ser resgatado.  

NOI: O tipo de situação atendida pela DPCA mudou nesta década?

Suely Rech: O volume de ocorrências envolvendo violência escolar aumentou bastante. As meninas estão brigando muito. Também cresceram os números de registros de abuso sexual. As pessoas estão mais informadas e têm coragem para denunciar. São frequentes hoje as situações de pais cujos filhos e filhas têm envolvimento com as drogas e fogem de casa. Tínhamos muita dificuldade com disputas de guarda que geravam falsos registros de abuso. É preciso filtrar muita coisa, buscar a verdade real e não apenas receber a informação. A forma como a ocorrência é conduzida faz toda a diferença.

NOI: Difícil conter o envolvimento emocional ?

Suely Rech: Nunca podemos dizer “esse não tem mais jeito”. Tendemos a olhar para as vítimas (no meu caso, crianças) e pensar “meu Deus, como pode acontecer isso?”. É natural sentir raiva, mas sempre procurei ajudar quem cometia os crimes, encaminhando para tratamento de saúde mental. Eu acredito que podem haver mudanças. A pena pura e simples não resolve. As pessoas na verdade precisam de ajuda, principalmente nos casos de abuso sexual, e provavelmente não encontrarão isso dentro de um presídio.

NOI: Você lembra de algum que te marcou muito?

Suely Rech: Vários. Um dos que mais me frustrou foi o do rapaz que matou a Taíse Sgabarotto, há uns oito anos. Ela descobriu que o tio traia a tia dela. Então ele a matou asfixiada e jogou o corpo no mato. Me empenhei muito na investigação, mas ele foi absolvido. Outro caso foi de um menino morto a facadas na escadaria do Santa Corona, em frente à Cantina Lunelli. Marcaram com ele um encontro pela internet e, na hora, o apunhalaram. O assassino cumpriu medida e, mais adiante, eu vejo no jornal estampada a notícia de que além de matar mais uma pessoa, ele acabou executado. Tantos se envolvem em uma situação como agressores e depois viram vítimas de homicídios. Outros que foram vítimas viram agressores... foram muitos mortos. Nunca contei, mas conhecia todos pelo nome. Outro dois casos envolvendo mães: em um foi encontrada uma cabeça de bebê na boca de um cachorro, o resto do corpo tinha sido comido. Em outro os cachorros comeram a cabeça e encontramos o corpo. Sentimos repulsa, raiva por essas mães que abandonam seus bebês. Depois que conhecemos a situação, percebemos que são pessoas acabadas, em desespero. Muitos dizem: temos que executar! Mas elas estavam perdidas, fora do ar, destruídas. A gente se pergunta: como chegam a esse ponto? Mas na verdade essas pessoas (mães) já estão mortas. Perderam a centelha da vida. O mal vem da dor.

NOI: Os fatos violentos tinham alguma relação com a condição social das pessoas?

Suely Rech: Não. A violência está associada à ausência de uma pessoa cuidadora que tenha responsabilidade. Quando um adulto cuida de uma criança - se preocupa, acompanha e atende as necessidades mínimas, é muito difícil que ela se envolva com o crime. Eu vi muitas crianças tendo que cuidar de outras, soltas, sem referência. Isso mais do que qualquer outra situação de pobreza ou carência gera a violência. Uma pesquisa feita nas favelas de São Paulo e Rio de Janeiro questionou por que alguns jovens nascidos ali se envolviam com violência e outros não. O fator determinante apontado pelo estudo foi o fato de o jovem ter ou não um vínculo com um adulto responsável. A grande maioria dos pequenos tem que “se virar”. O que eu sempre percebi foi que os que se envolviam como agressores não tinham os valores mínimos de amor à vida. Para eles morrer era um risco que se corria, algo a que eles estavam sujeitos e que, se acontecesse, fazer o quê?

NOI: Registrar um boletim de ocorrência resolve alguma coisa, afinal?

Suely Rech: Acabamos não acompanhando todos os desdobramentos de um caso. Apurávamos as circunstâncias e a autoria, mas não podíamos dar outro tipo de respaldo. Os desdobramentos são com o MP ou o Judiciário. Ficava sempre pensando o que poderia ter sido feito a mais...

NOI: Então é um esforço vão?

Suely Rech: Nem sempre. Em alguns casos conseguíamos contribuir para o resgaste dos adolescentes. Lembro dos que voltavam para falar comigo anos depois de terem passado pela DPCA para contar que tinham sido aprovados no vestibular ou arrumado emprego. Outros escreviam cartas. Uma chegou a dizer que me via como mãe. Lembro de uma adolescente que estava junto de um grupo de meninos que matou um rapaz a pedradas, por causa de um par de tênis. Quando ela ficou sabendo que estava sendo procurada pela polícia, veio até a DPCA se apresentar. Nessas horas tu vês a confiança que eles depositam em ti.

NOI: É possível mensurar o resultado dos procedimentos?

Suely Rech: As delegacias especializadas (da mulher, idoso, criança) têm uma função fundamental. Quando conseguimos dar um atendimento diferenciado para essas questões podemos estar evitando que as pessoas se envolvam em situações mais graves no futuro. Nesse período (2002 – 2014), observei que a cada dez vítimas ou autores de homicídio, mais da metade já tinha passado pela DPCA. Eu me questionava: Quem sabe se tivéssemos mais estrutura, se a rede fosse mais eficiente, quantos crimes poderiam ser evitados? As vezes os jovens já tinham passado pelo Conselho Tutelar, pelo MP, pelo Judiciário, as escolas tinham conhecimento das dificuldades e por alguma razão nada disso conseguia mudar seu caminho. Vi situações em que todos se reuniram para elaborar o atendimento ideal, sem resultado. O volume de ocorrências, a deficiência de recursos humanos e materiais, tudo isso prejudica muito...

NOI: Doze anos e milhares de ocorrências depois, porque deixar a DPCA?

Suely Rech: Quando comecei, tinha recém passado por uma situação muito difícil. Perdi um filho, ainda bebê, em 2001. Depois disso imaginei que não conseguiria trabalhar com situações violentas envolvendo crianças, mas compreendi que era exatamente ali que eu deveria estar. A minha experiência de dor e perda me moldou para entender muitas situações com as quais eu teria de lidar. Quando acontece um fato desses contigo, te perguntas “por que comigo?”. Aí, quando começas a trabalhar vês que isso não acontece só contigo, mas com muitos. Só quando tu passas por determinadas coisas consegues assimilar o que os outros sentem. A dor da minha perda me ajudou a ter sensibilidade para lidar com quem precisou de mim na delegacia, me preparou melhor para, por exemplo, atender uma mãe. Eu me identificava tanto! Meus filhos me cobravam porque eu sempre estava envolvida com o trabalho. Mas eu gostava muito. Estou me preparando para a aposentadoria e entendi que seria importante viver outra dinâmica. Eu encerrei um ciclo, mas a verdade é que aqui, no coração, nunca vou me desvincular.