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Avaliação de Perfis

02/01/2019

O julgamento da Imprensa

Dono de canetas e cadernetas que acham que muito podem – e até assassinam quando assinam – tenham sempre cuidado comigo, avisa o advogado de defesa que atua hoje nos casos mais complicados do Brasil

Juizes, promotores, advogados, delegados, pessoas do povo que clamam tanto, todos os sujeitos que de alguma maneira fazem parte, todos nós, temos uma parcela nesse modelo brasileiro de processo penal, que é um modelo genocida Não é só o fato de a cadeia ser ruim, oferecer péssimas condições, é o modelo de solução dos conflitos. Esse modelo acirra o conflito e não resolve nada porque a situação já ocorreu. O que ele faz é piorar tudo. O problema não é a cadeia, é o uso do Diteito Penal que é terrível. Essas pessoas, que querem a pena de morte, são tão ou mais violentas do que as que cometeram um crime. A violência é intrínsica. Não vamos conseguir tirar das pessoas o conflito violento. Não temos como segurar seres humanos intolerantes, que são os que não respeitam nenhum tipo de elemento da vida. As pessoas gostam disso. Param para ver o acidente, fazem roda quando dá a briga. Como eu vou querer uma sociedade que saiba viver em paz, sem violência, em que a minha violência na comunicação não gere mais violência se eu tenho um jornalista, que diz em uma rádio que devemos pensar na pena de morte?

* A frase é de Jader Marques, advogado do médico cirurgião Leandro Boldrini, pai de Bernardo Uglione Boldrini, que foi encontrado morto no dia 14 de abril deste ano. Marques defende Elissandro Spohr, o Kiko, sócio da boate Kiss, que incendiou em janeiro de 2013, em Santa Maria, causando a morte de 242 pessoas e também atuou como assitente de acusação no caso do goleiro Bruno. Holofortes não lhe faltam, embora ele seja um critico ferrenho da mídia. A seguir, entenda porque o advogado afirma que a imprensa é hoje, uma das principais inimigas do processo penal no Brasil.

Como é que alguém assassina com uma caneta?

Jader Marques: Cada condenação significa a morte de uma pessoa. Ela acaba com a possibilidade da pessoa de ter um eu de novo. Quem assina uma sentença não cumpre apenas uma função burocrática, não realiza uma atividade qualquer. O direito penal tem sido utilizado para tudo e para todos. Hoje, todo mundo espera que ele seja a solução para todos os males. O Brasil está na terceira posição de país que mais encarcera no mundo. Se no mundo isso é um problema, nós, brasileiros, estamos abusando do sistema. Não é só o fato de a cadeia ser ruim, oferecer péssimas condições, é o modelo de solução dos conflitos. Esse modelo acirra o conflito e não resolve nada porque a situação já ocorreu. O que ele faz é piorar tudo. O problema não é a cadeia, é o uso do Diteito Penal que é terrível. Qualquer pessoa processada, até mesmo por um delito leve, tem um transtorno enorme na sua vida…

 A imprensa, atrapalha?

Nos casos rumurosos isso acontece. Esse crime (que ganha notoriedade na imprensa) ganha muita importância e acaba tirando um pouco da nossa possibilidade de enxergar as milhares de outras pessoas que não têm atenção ou julgamento rápido como os crimes midiáticos. Então não podemos tomar esse pelos milhares de outros que não são atendidos como deveriam. Nos crimes que têm essa atenção, todo mundo fiscaliza mais. A câmera tem um poder muito forte. O olhar da mída sobre o processo coloca todo mundo para trabalhar com a máxima atenção. Mas nós temos uma quantidade enorme de pessoas que são processadas e condenadas sem qualquer chance de defesa porque são pobres. Sei que a defensoria pública faz o máximo possível. Mas essas pessoas (os mais pobres) não são consideradas dignas de defesa… são trituradas pelo sistema penal.

Você acredita que existe muita confusão hoje em relação ao que é inquérito policial, o que é denúncia do Ministério Público e o que é sentença de julgamento?

Os erros que a imprensa comete de ordem terminológica, uso errôneo de termos técnicos como “liminar”, “medida cautelar”, “habeas corpus”, não são o grande problema. O problema é que a imprensa antecipa a versão policial como sendo a correta. O primeiro aparelho do Estado a atuar é a polícia e a imprensa reproduz isso como se fosse a restauração da ordem pública. O crime é algo que choca a sociedade. Ele representa desestruturação da ordem mas a polícia não é capaz de reestruturá-la. Por essa ênfase que a imprensa dá, a polícia entra numa busca frenética por uma resposta. Essa resposta que acalma a sociedade é a punitiva. Dificilmente a gente vê a polícia dizer tranquilamente que não encontrou provas suficientes para solucionar o crime. Esse problema é ainda mais sério quando a imprensa, de propóstio, dá credibilidade maior do que devido para o trabalho da acusação. E ai do Judiciário se não condenar! Nem adianta não condenar. Temos uma sede de vingança tão forte que depois que a pessoa já cumpriu a pena, lá na frente, ou recebe uma progressão de regime por exemplo, não existe mais local onde ela possa recomeçar a vida. Ela ainda é criticada por ter saído da cadeia.

Qual a origem dessa sede de vingança?

Não tenho resposta. O que nós precisamos é fazer uma reflexão muito profunda que começa no quanto a violência faz parte do ser humano. Nós imaginamos que poderemos ter uma sociedade não violenta mas isso não é possível. Essas pessoas, que querem a pena de morte, são tão ou mais violentas do que as que cometeram um crime. A violência é intrínsica. Não vamos conseguir tirar das pessoas o conflito violento. Não temos como segurar seres humanos intolerantes, que são os que não respeitam nenhum tipo de elemento da vida. As pessoas gostam disso. Param para ver o acidente, fazem roda quando dá a briga. A violência chama o ser humano. A gente convive com a violência e quer uma solução que nos tire dela. O nosso problema é cultural. A cultura da paz precisa ensinada. Nós não precisamos ensinar as crianças as serem perversas a brigarem pelo que elas querem, isso vem com elas. Na verdade a gente dociliza a criança. A gente ensina: “empresta o brinquedo para o amiguinho, não machuca ele”.  Cultura é algo complicado.

Outro dia um comentarista falava sobre o caso Bernardo e disse que “como pai”, a situação o fazia pensar em pena de morte. O que você acha desse tipo de analogia que a imprensa às vezes faz?

“Eu como pai, eu quero a pena de morte…” como se nós tivéssemos o absoluto controle sobre a futura delinquência ou não do nosso filho. Como se pudéssemos antever que nossos filhos nunca se envolverão em um crime, ou numa morte por ciúmes, enfim. Como pais, o exemplo que temos que dar é sermos contra a pena de morte! Nossos filhos precisam enxergar em nós alguém que prega a paz e não a guerra, a morte, a dizimação dos outros. Temos que mostrar que somos capazes de oferecer a oportunidade de voltar a conviver. Meu filho, João Pedro, de 11 anos, ficou apavorado quando eu disse que procuraria o sujeito que nos assaltou no carro a mão armada. Mas eu tenho certeza que é muito melhor conversar com ele sobre isso do que dizer para ele: filho, um cara como esse temos que matar! Precisamos de um Estado justo. O Estado vem matando há horas. O sistema penal brasileiro hoje é tão duro, que a vítima pode processar, mas não tem a possibilidade de perdoar. O perdão da vítima não tem valor, mas o que ela quiser de mal, isso vale. Daí, nesse momento que a gente está passando como eu vou querer uma sociedade que saiba viver em paz, em que a minha comunicação não gere mais violência se eu tenho um jornalista, que diz no ar que devemos pensar na pena de morte? Por isso que não dou entrevista para certos canais. Quando cai na baixaria, não atendo mais.

Por que você afirma que certos delegados são promotores frustrados?

Eles não trabalham pela elucidação seja lá qual for. Eles sofrem quando o inquérito não leva à acusação. Eles não admitem que as vezes não tem como elucidar, não dizem “não vou apontar suspeitos”. O delegado trabalha para o promotor, enquanto ele deveria trabalhar para a sociedade. Em contrapartida, quando o promotor investiga, é porque é um delegado frustado.

Por que você acha que o advogado de defesa tende a ser visto como o vilão de história?

Alguns repórterers me entrevistam com raiva no olhar, raiva nas perguntas, alguns mais novos fazem comentários do tipo “Absurdo! Que petulância! Que cara insuportável!”, sobre minhas respostas e viram as costas. Eu estou nessa profissão há quase 20 anos, mas isso me afeta. Mas faz parte, quando isso parar de me afetar significa que eu perdi a sensibilidade, tenho que saber lidar com isso… 

É verdade que você tem uma imensa dificuldade de acesso ao inquérito quando atua na defesa do réu?

Quando isso acontece eu faço questão de usar a notoriedade do caso para criticar algo que atinge todo mundo. Para tentar fazer da briga que acontece dentro desses casos, explorados pela mídia, um exemplo para todos que sofrem calados. Tu não imagina quanto apoio recebo! Colegas dizendo “eu também estou com meu caso lá e não consigo ver o inquérito!”. Aí as pessoas percebem o quanto essa luta é delas. Isso é fruto de uma deslealdade da Polícia, do Ministério Público, do Judiciário e dos advogados. Não é éticamente correto não dar a informação ao réu sobre do que ele está sendo acusado. Isso é uma prática muito feia.

Você afirma também que “as vezes a única forma de saber das coisas é ouvindo o rádio, ou acompanhando entrevistas coletivas”. É comum a imprensa ter mais acesso aos autos do que os advogados de defesa?

Sim. E isso está absolutamente errado, é um desvio ético grave. Nessa sociedade do espetáculo todo mundo quer ter um espaço. As pessoas fazem as coisas mais absurdas do mundo por três minutos de fama. Sair na televisão é algo que torna a pessoa “alguém”. Nós não conseguimos mais ter essa tranquilidade com a individualidade. Existe uma busca por estar acima dos outros. Não conseguimos mais ficar bem com o fato de sermos mais um na multidão. As pessoas sentem solidão, daí, têm que se destacar para mostrar para elas mesmas que são alguém.

Como pai, como você se sente defendendo o pai do Bernardo?

Eu não vejo nenhuma relação com o que eu penso sobre a inocência do Leandro com o fato de ter um filho da idade do Bernardo. Eu sei como é criar uma criança sozinho e não estou nos comparando. As pessoas não se dão conta o quanto da vida do Bernardo, do Leandro, reflete a vida delas. Recebo mensagens dizendo: “eu passei por isso”, um absurdo tu defender ele! As mulheres atacam o Leandro porque têm maridos omissos. Há muita incompreensão. As pessoas agora se preocupam mais com o problema deles do que com os seus. E o teu problema onde tá? Crimes entre familiares afloram sentimentos nas pessoas. O júri trata das paixões humanas levadas as última consequências. Todo mundo acaba tocado. O crime de morte é defícil de lidar. O pai de quem matou sofre tanto quanto o pai de quem morreu.

Você alguma vez já recusou um caso por princípios?

Meu filho um dia me perguntou: “Pai se tu é advogado, então tu mente?” Eu respondi que não necessariamente, e ele disse: “Então eu não quero ser teu cliente!” (risos). Saber ou não a verdade é uma coisa bem importante. Eu não pego casos para o quais eu teria que inventar uma prova. Eu costumo agir assim, quem fez, fez e receberá o que é justo por isso. Explico para o cliente que as vezes o único caminho é ser condenado, e ele aceita. É melhor lutar por uma condenação correta que vai dar a ele uma pena baixa. Inclusive eles aceitam bem essa ideia. O réu sabe que alguma coisa vai cumprir e aceita isso com naturalidade. Se o cliente não aceita o caminho razoável eu tenho sérios problemas. Fora do razoável, é bobagem. Foi por isso, por exemplo que não peguei a defesa da Kelly, ela não aceitava confessar tudo o que fez, então eu disse: “procura outro”.

Qual foi a situação mais absurda que você já enfrentou na carreira?

Foi um tapa na cara que eu levei da mãe de uma das vítimas que morrerram na boate KISS. Isso foi uma grande injustiça. Eu entendo a raiva dela, o descontrole, o drama pessoal que ela deveria ter em relação a filha que perdeu, o ódio que ela teve com o acontecimento. Entendo que ela não soube lidar com isso. O tapa não é o problema, o problema foi ela dizer que eu estava provocando. Eu estava extremamente nervoso. Estávamos no tribunal, o ambiente era de absoluta seriedade, não tinha como eu provocá-la. E outra que eu sou vivido, experiente. Quando a gente absolve a gente sabe que a repulsa vai ser grande, que temos que respeitar os familiares. Em nenhum momento eu faltei com respeito. O tapa dela não me agrediu tanto quanto a mentira…

Em uma rede social você declarou: “Quando o sono se vai é hora de comer um livro”, você dorme muito pouco?

Ontem dormi 12 horas. Fazia mais de um ano que isso não acontecia. Sou hipervigil. To sempre ligado, nunca entro no sono profundo, sonho muito com os processos. Ás vezes levanto e vou ler. Sou capaz de me reabilitar com apenas três minutos de sono. Durmo em media três, quarto horas por noite. Mas eu gosto do que faço. Eu vivo isso 24 horas por dia, eu não desligo. Eu não acho que a pessoa precisa ser profIssional e depois pai, e depois atleta. Por que eu não posso ser o Jader o tempo todo? Eu faço o que eu adoro eu não preciso desligar. Estou sempre em busca da solução do problema. As vezes eu fujo, não falo nada do caso, porque naquele momento o caso tem que sair do ar e o mais importante é que ninguém fale dele. Se eu não souber usar a imprensa a favor e não souber me afastar por ego ou vaidade, no momento certo, eu perdi o foco no caso.

Você diz que a profissão escolheu você… por quê a advocacia o escolheria?

Sabe a pessoa que decide ser bombeiro? O cara decide enfrentar o fogo, a ruína de um prédio desabando, uma sitaução extrema de possibilidade de dano pessoal? O sujeito que é medico e decide fazer cirurgias em um momento em que a vida e a morte dependem dele? Enfim, eu poderia enumerar uma série de situações e perguntaria o que leva alguém a fazer isso… Aos seis anos eu acompanhva meu pai (também advogado) no juri. Me lembro de um que acompanhei a preparação a chegada no Fórum, o juiz permiitu que eu ficasse na sala. O réu era amigo do meu pai. Era desconhecido para mim, mas meu pai falava dele com tanta força que ele parecia seu melhor amigo. A dedicação do advogado para o cliente, me fez perceber que ele era muito importante. Decidi que era isso que queria fazer. 

Trajetória: Jader nasceu em Alegrete, no dia 08 de janeiro de 1974. Mudou-se para Porto Alegre aos treze anos, na companhia da irmã mais velha, para prosseguir com os estudos. Hoje trabalha com o pai. Divorciado, compartilha a companhia do filho João Pedro, de 11 anos, com a mãe do menino. Marques é especialista e Mestre em Ciências Criminais pela PUC/RS, doutor em Direito pela UNISINOS/RS e pós-graduado em Direito Médico pela Escola Paulista de Direito. Integra a Associação dos Escritórios de Advocacia Empresarial - REDEJUR, o Centro de Estudos das Sociedades de Advogados – CESA e o Instituto Transdisciplinar de Estudos Criminais – ITEC. Na OAB/RS, foi membro da Comissão de Defesa das Prerrogativas dos Advogados, membro da Comissão de Direitos Humanos, membro da Comissão de Agilização Processual, julgador no Tribunal de Ética, Conselheiro Seccional e criador do Centro de Estudos. Atuou como Professor na Faculdade de Direito Ritter dos Reis - Canoas/RS, Faculdade CESUPA em Porto Alegre e Pontifícia Universidade Católica/RS. Ocupou o cargo de Conselheiro Penitenciário do Estado do Rio Grande do Sul. Fundador do Instituto Lia Pires. Atualmente, leciona Direito Penal e Direito Processual Penal na Escola da AJURIS e em Cursos de Pós-graduação.

* Entrevista de Caroline Pierosan, publicada na edição Julho 2014 da Revista NOI