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Escrita Estratégica

13/02/2016

A Vida Além dos Cem

No centenário de Nilza Micchelin, o raro relato de quem presenciou grande parte dos fatos mais importantes da história moderna  

Nilza Farina Michelin nasceu no dia 11 de março de 1916, filha de Egídio e Balbina Brévia Farina e neta de José e Luiza Monetta Brévia e de José e Sophia Bertani Farina, uma família tradicional, dedicada ao ramo metalúrgico, que morava onde hoje é o Bairro São Francisco, em Bento Gonçalves, Rio Grande do Sul "Fazer o bem aos outros me ajuda a viver"

O primeiro Código Civil Brasileiro, o dia em que o Brasil entrou na Primeira Grande Guerra após ter seus navios afundados, Lampião e todo seu ciclo, a Primeira Semana da Arte Moderna, a Coluna Prestes, a primeira travessia aérea do Atlântico feita por Lindenberg, Stálin assumindo o poder na Rússia, Roosevelt nos Estados Unidos, Perón na Argentina, Hitler na Alemanha, Mussolini na Itália, ascensão, apogeu e morte de Getúlio Vargas, o nascer do Nazismo, o ataque japonês a Pearl Harbour, a Segunda Grande Guerra, a criação do Estado de Israel, Simone de Beauvoir lançando “O Segundo Sexo”, a Guerra da Coréia, do Vietnã, os Hippies, o assassinato de Kenedy, o homem na Lua, o primeiro computador, Kubitschek inaugurando Brasília, o Golpe de 64 e toda a Ditadura, o surgimento da Internet, a queda do Muro de Berlin, o primeiro clone, as “Diretas Já”, a morte de Tancredo Neves e, por fim, a era digital... Ela assistiu ao vivo tudo isso... e muito mais.

Aquele som ao longe calou a cidade com um arrepio. O imponente apito do chaminé assumiu o céu, avisando, na distância, a chegada do trem pela primeira vez a Bento Gonçalves, no início do século XX. A pequena comunidade, com pouco mais de 2.500 habitantes, havia assistido nos anos anteriores a chegada de mais de cinco mil trabalhadores ferroviários trazendo o progresso tanto almejado. Um feito tão extraordinário quanto se hoje fosse construído na comunidade um aeroporto internacional. Quando o vapor da máquina pôde ser visto por entre as árvores, aquele pequeno mundo se voltou inteiro para a última curva. A vida ali nunca mais seria a mesma... Nilza nasceu assim, uma menina vivaz, decidida a ser feliz, testemunhando o brotar de uma nova Era.

Com exatamente um século na bagagem, Nilza tem uma memória de poucos, usa óculos apenas para letras miúdas, toma medicação somente para controlar o Diabetes, acorda cedo e sorrindo. Seu segredo? “Faça o bem sem olhar a quem e ama a ti mesma”. Perspicaz, incansável, sempre bem disposta e bem humorada, tendo começado a viajar aos 80 anos virando o mundo pelo avesso, essa linda mulher de camisa tigrada e cheia de opinião, que nunca queixou-se de cansaço ou de uma dor sequer, ainda tem sonhos, quer muito mais da vida, viajar mais, ajudar mais e não deixar de sorrir. Ahn! E quer fazer um vestido novo, verde..!

NOI: Como se faz para chegar aos cem anos?

Nilza Farina Michelin: Não sei, ainda não estou preparada (risos).

Como é a Nilza?

Nilza Farina Michelin: Sou o tipo de mulher que tem controle. De pequena, diziam que eu era uma peste que nem sei, braba! Mas eu sou natural. Só sou braba quando tenho a razão total do assunto em discussão, senão não. Não arrumo polêmica por bobagens. Sou tolerante com muitas coisas, com pessoas honestas, sou incapaz de ir contra. Amo a Deus sobre todas as coisas, depois vem minha mãe. Minha mãe, pra mim, é uma Nossa Senhora, tem todas as qualidades. Como mãe, tia, avó, ela é como eu, segura. Se vejo uma coisa que está sendo feita errada e podia ser diferente, que uma pessoa está se enganando e eu pudesse avisar que não é assim, eu explico. Isso acontece por causa disso, disso e disso. Se você muda, acontece isso, isso e isso. Não sou, como se diz em italiano, ‘testarda’.

Como a senhora se sente?

Nilza Farina Michelin: Não estou de boa saúde.

Não? O que há?

Nilza Farina Michelin: Não sei, o médico não me diz. Mas minha boca fica seca porque fiz implantes dentários no ano passado e a medicação tem esse efeito (tomando outro gole de água de seu delicado copo, bem servido pela sobrinha Valéria).

O que a senhora gosta de comer?

Nilza Farina Michelin: Gosto de comer bem.

E a saúde?

Nilza Farina Michelin: Tenho vários motivos para não comer açúcar. Sou diabética há muitos anos, herança de minha avo paterna. A avó era diabética e vários da família herdaram isso. Então eu tive que fazer o sinal da cruz e me render. Mas não é fácil. Eu fazia doces deliciosos e disse que nunca mais comeria açúcar. Hoje há remédios, tomo diariamente e vou levando assim. Minha cabeça se transformou. Bom, primeiro Deus na minha vida, porque está me deixando uma vaga para eu pegar e botar no lugar, foi o que fiz. Passei a tomar um remédio pro resto da vida. Não perdi nada. Os meus familiares todos, achei que ficariam chocados se comesse açúcar, afinal todos gostam de dar palpites na casa dos outros. Mas há remédios, podes ser diabética e tomar e comer, com moderação, sem precisar dar explicação como quando era mocinha, ficava chato ter que recusar uma sobremesa e explicar porque isso deixa uma pessoa marcada, as pessoas passam a olhar pra você com dó, não é bom. É só ter controle, e isso eu tenho. Mas Deus está lá em cima e se eu me assanhava para comer um pudim de nozes, ou de coco, afinal todos os pudins são muito especiais, agora já estou um pouco velha, não tenho mais tanta necessidade de comer doces. Só de vez em quando!

Acorda cedo?

Nilza Farina Michelin: Preguiçosa não sou, mas muito madrugadeira também não. Se tenho um compromisso acordo na hora.

Está uma menina! A senhora deve ter sido uma menina bem arteira...

Nilza Farina Michelin: Isso sim! Eu me misturava com os guris da época e jogava bolinha de gude. Fui um sucesso! Era mandona e os rapazes eram meus inimigos, adversários. Eu ganhava sempre e ia pra casa com os bolsos cheios de bolinhas. Eu tinha um número bastante grande de “inimigos” porque todos os guris queriam me derrubar no jogo, nenhum conseguia. Me dediquei a essa brincadeira então eles sabiam que não adiantava jogar comigo, perdiam todas as bolinhas. Eu era o super desafio! E sabe onde guardava? Eu tinha uma meia comprida de nylon e colocava todas as bolinhas dentro, a meia estava sempre cheia. Eu era craque, acha que iria me deixar vencer pelos marmanjos? Não mesmo! No grupo dos rapazes eu tinha todo prestígio, brincava todo dia com eles, que não queriam ficar de mal comigo para não perderem suas bolinhas de gude então, carrinho de lomba! Na rampa do Susfa.

Mas a senhora tinha seu próprio carrinho ou era emprestado?

Nilza Farina Michelin: Era meu.

E seu pai, o que dizia?

Nilza Farina Michelin: Nem ficava sabendo.

E a mãe?

Nilza Farina Michelin: Coitadinha, trabalhava dia e noite, não sabia o que eu fazia, depois, quando chegava em casa, eu era santinha, não ia contar, despistava.

Os irmãos?

Nilza Farina Michelin: Driblava todos eles. Em casa eu era uma menina. Quando saia de casa, um garoto. A mamãe sempre muito ocupada em trabalhar. E antes de voltar pra casa eu me lavava os pés, me ajeitava, quando chegava já estava bem vestidinha, não estava mais suja das brincadeiras. E escondia a meia de bolinhas.

Mas escondia onde, dentro de casa ou fora de casa?

Nilza Farina Michelin: Fora de casa, senão a mãe descobriria... se descobrisse a brincadeira acabaria.

E a sua família morava onde , exatamente?

Nilza Farina Michelin: Perto da Praça Vico Barbieri e da Igreja Metodista. A casa não existe mais.

Sua mãe lhe levou na igreja Metodista pra aprender as habilidades domésticas?

Nilza Farina Michelin: Sim, eu vivia muito agarrada às mulheres da igreja porque elas me ajudavam, inclusive pra esconder as bolinhas.. a malícia ensina.

E o Édalo, morava perto? A senhora o conhecia? Ele jogava também? A senhora tirava as bolinhas de gude dele também?

Nilza Farina Michelin: Ele era meu primo, morava no centro, mas não jogava, ele era mais comportado, muito mais do que eu, eu era vira-lata.

Depois quando a senhora cresceu, passou a jogar tênis?

Nilza Farina Michelin: Sim, comecei a ficar mais comportada... Depois que a gente cresce, muda de ideia, larguei o jogo e minha mãe começou a me baixar a crista, dizendo que era muito feio uma menina brincar daquele jeito e fui abandonando... minha mãe me tirou aquela folia de jogar bolinha, cuidou de me desviar dos jogos de meninos, fui me tornando menina, mulher. A mãe era muito bondosa. Éramos em cinco irmãos, ela cuidava da casa e de todos nós.

E como era Bento naquela época, o que tinha, o que era importante? Era mais bonita a cidade?

Nilza Farina Michelin: Mais ou menos..

Onde os rapazes e as moças iam?

Nilza Farina Michelin: As meninas eram um pouco mais presas, perderam a mania de imitar os rapazes com o passar do tempo... isso, sabe, depois que se cresce, a gente fica com modos de menina...

E os matinés, como eram?

Nilza Farina Michelin: Ah, isso eu não perdia um! Eram minha paixão. Gostava dos matinés à tarde, dos filmes de mocinho.., do Rin-Tin-Tin, eu tinha que fazer tudo direitinho durante a semana pra ganhar o dinheirinho pro ingresso. Chorava muito pra ir no matiné. Os filmes mostravam as florestas do Canadá, era cinema mudo, com pianista para dar o tom de cada momento do filme...

O que mais gostava de fazer depois? Tinha amigas? Lembra os nomes?

Nilza Farina Michelin: Gostava de ler, das coisas de mocinha. Éramos um grupo grande de amigas. Não lembro os nomes mas tinha uma da família Lindemayer, morava logo depois do Faccenda, e tinha uma da família Gasperin, que era mais velha...e tinha uma grande amiga, da família Lubisco, que morava em Porto Alegre..

A senhora usava vestido ou calça?

Nilza Farina Michelin: Vestido, mas quando podia botava calças.

E esse gato lindo? (USAR FOTO DO GATO POR AQUI)

Nilza Farina Michelin: Sempre gostei de animais. Mas depois de velha me tornei apaixonada por bichos, esses gatos são meus amores. Sou civilizada, sei cuidar dos meus bichinhos, com muito amor. São prioridade na minha casa. Meus gatos têm muitos privilégios.Estão sempre limpos e cheirosos.

São lindos... A senhora lembra, de pequena, da chegada do trem a Bento Gonçalves? Devia ter apenas três anos de idade.. mas chegou a viajar de trem?

Nilza Farina Michelin: Acho que não...

Iam a Porto Alegre? Como?

Nilza Farina Michelin: De pequena não ia. Depois quando passei a namorar o Édalo íamos de carro.

Como conheceu Édalo?

Nilza Farina Michelin: Ele morava no centro, os pais dele tinham uma padaria na rua principal. O Édalo atendia no balcão. Ele começou assim, depois virou um armazém. Ele detestava mas teve que cuidar. Não gostava porque tinha que lidar com clientes da colônia que pechinchavam muito e ele não tinha liberdade para pechinchar. Édalo trabalhou duro, seu pai foi muito rigoroso, não deixou ele na rua, jogar bolinha, fazendo que ele tomasse amor pelo trabalho e por ganhar dinheiro com isso. Depois ele foi estudar em colégio interno e então voltou. Nos matinés, ele pagava as balas para mim e tentou jogar bolinhas também pra se aproximar de mim, porque senão era ele de um lado e eu de outro. Então, o parentesco nos aproximou. Depois que começamos a namorar, ele me cortou qualquer relacionamento com os outros, era muito ciumento.

Mas a senhora foi uma moça realmente muito bonita, ainda hoje é linda!

Nilza Farina Michelin: Com 99 anos ainda não preciso usar óculos!

A senhora tem muito poucas rugas pra sua idade! E que sorriso!

Nilza Farina Michelin: Não me faça rir que vêm as rugas depois! (risos..)

As mãos tão lindas?

Nilza Farina Michelin: Amo elas! Quando moça, minha mãe me colocou no batente, eu fazia todo o serviço da casa mas desde jovem faço as unhas e o cabelo todos os sábados. A Solange é quem faz minhas unhas há mais de 30 anos e a Carmen é minha cabeleireira há 20 anos, vem na minha casa. Sempre fui muito cuidadosa com as unhas e comigo. Desde que sou gente, cuido das unhas, já de criança achava as unhas a coisa mais linda do mundo. E fazer o pé, porque o pé feito dá um bem estar, agente se sente tão bem. Uma prima minha de porto alegre, uma vez me disse que ela fazia o pé todas as semanas. Eu nunca tinha ouvido falar em fazer o pé. O que era fazer o pé? Foi então que aprendi e corri na minha vizinha pra ver se ela fazia o meu pé também. ‘Claro que faço, pra homem e mulher’, ela me respondeu. E eu fiquei assim, achando com que cara ia pedir pra fazer meu pé que eu já era assim, velha, e ela só uma mocinha. Mas depois que me ajeitei, que coisa boa. No verão, colocava uma sandália, sentava numa cadeira e ficava olhando para as unhas dos pés, ora pra uma ora pra outra, para ver se estavam iguais, que coisa linda eu achava, olhar as unhas arrumadas!

E esse cabelo que a senhora tinha quando jovem? Como fazia o penteado?

Nilza Farina Michelin: Passei 27 anos sem cortar o cabelo, era longo e de qualidade, nunca deixei de arrumar. O Édalo também sempre andava na pinta. Mas ele nunca se comprou um lenço sequer, queria que eu comprasse suas roupas. Ele dizia: ‘estou sem roupas, uma vergonha, vê se tu acertas comprar uma roupa que assente pra mim’, então eu ia lá e comprara o que encontrava de melhor, pronto. Aí ficava tudo bom. Ele me levava a Caxias, comprávamos os tecidos importados do Alfred.

Qual o seu lema?

Nilza Farina Michelin: Faça o bem sem olhar a quem. E também ame a si mesma.

Quais eram seus sonhos?

Nilza Farina Michelin: Se há uma coisa que nunca me preocupou era de ter namorado; isso realmente nunca me preocupou. Eu era, não exatamente uma liberal, era ‘meso a meso’. Meu namoro com o Édalo foi bem tranquilo, ele era muito apegado a mim, queria namorar comigo e suou para me segurar, não que eu fosse namoradeira. Só tive a ele como namorado, fui muito fiel, com o tempo também eu me apeguei a ele. Meu sonho era de viajar, mas o Édalo trabalhava muito, coitado, não tinha tempo para isso, não saía nunca, não aproveitou nada da juventude... Só passei a viajar, e bastante, depois que ele faleceu...

Quem foi um bom prefeito em Bento Gonçalves?

Nilza Farina Michelin: Nenhum.

Nem o Milton Rosa?

Nilza Farina Michelin: Enfunerou  a prefeitura. O partido dominou ele e ele se perdeu.

Mincarone?

Nilza Farina Michelin: A desgraça de Bento Gonçalves.

E o que a senhora fez para “derrubar” governos de oposição, especialmente Mincarone?

Nilza Farina Michelin: Eu e Ana Variani íamos para a colônia, ela dirigindo seu famoso Fuca, e com o cachorrinho atrás, para enaltecer o Darcy Pozza. Aí dizíamos para as mulheres a quem os maridos davam os ‘santinhos’ mandando em quem votar: o Mincarone fez isso e aquilo para vocês? Não. Deu isso e aquilo? Não. Então por que vocês vão votar nele? Votem nesse rapaz que é bom, é de Bento. Aí elas diziam que os maridos tinham dito pra votar no outro e nós dizíamos: ‘bom, eles dizem em quem ELES querem que votem, mas na hora vocês vão votar em quem VOCÊS querem’. E conseguimos. A Ana Variani era uma grande amiga, jogávamos cartas juntas, quando eu não ia a Ana dizia que o jogo não tinha graça nenhuma. A Ana também era muito divertida. O Variani falava grosso.

Como o Édalo?

Nilza Farina Michelin: Mais ou menos, ele era ciumento.

Mas na política a senhora já fez campanha para várias pessoas, ou não?

Nilza Farina Michelin: Sim, mas para gente boa, porque colocavam uma podridão lá... a Ana e eu éramos conhecidas como as ‘Arenetes’ (da ARENA, partido da época). Quando ganhamos a eleição com Mário Mônaco, foi feita uma passeata bárbara, levaram um burrinho, fizeram uma imitação de uma zebra e nós duas fomos colocadas num Jipe, fomos ovacionadas, todo mundo na rua aplaudindo a vitória. Era nem sei há quantos anos que o PTB comandava a prefeitura. E a Dilma, me diz? Até hoje oposições não fizeram nada. Pra mim a Dilma também gastou uma barbaridade.

A senhora já deu a volta ao mundo muitas vezes, mas de que lugar mais gostou?

Nilza Farina Michelin: Nova York. Fiz de tudo lá, que cidade fantástica... o americano é um povo de pulso, realizam tudo.

O que a senhora gostaria de ter dito para seu Édalo, e não disse? O que diria, hoje?

Nilza Farina Michelin: Teria muitas coisas a dizer... muitas coisas... sempre foi muito companheiro... mas eu não era assim tão bondosa não, eu era braba. Olha minha foto, não estás vendo que eu tinha os olhos de braba?

Sim... o olhar não era manso não, em todas as fotos... tem um ‘quê’ de Hilda Furacão...

Nilza Farina Michelin: Minha mãe quis esperar que o filho mais novo, Emyr, completasse 16 anos para só então bater a foto da família, porque ele era muito mais jovem do que nós, os irmãos, era temporão, e ela queria que todos tivessem feições já adultas para o registro, com fotógrafo que veio de Caxias. Ela botou o seu vestido mais bonito...

O que a senhora diria para os jovens de hoje?

Nilza Farina Michelin: Estou muito decepcionada com os jovens de hoje. Estão perdendo a juventude. Eles não tem nada do que gostar, não estão deixando nada de lembrança. Tenho muitas lembranças do meu tempo. A gente se contentava com o que tinha; eles agora tem tudo e não se contentam. Têm muito mais do que nós tínhamos, mas não são felizes. Eu tive diversos problemas de saúde e ainda continuo, estou sempre doente, mas tenho uma força interior muito maior do que a doença. Alegria de viver. O que digo que quero fazer, faço. E quero fazer uma viagem ainda. Já fiz tantas que nem sei. De cada lugar trouxe uma pequena lembrança (apontando as prateleiras da sala, forradas de souvenirs).

E para onde a senhora quer ir agora?

Nilza Farina Michelin: Bom, poderia repetir as viagens que já fiz. Viajar ensina. Tive sorte por poder viajar. China, Japão, tudo me serviu e acho que não perdi nada.

O que a senhora acha que precisaria melhorar em Bento?

Nilza Farina Michelin: Tudo. O PT não é um bom governo. Sabe, o PT, as oposições, quando estiveram no governo, sempre escolheram os elementos de mau caráter para colocar lá no comando. E eles teriam bons elementos, pessoas corretas, mas escolheram sempre os carcaças.

Mas não está mais no governo, agora é PP, "Arena" ! Não está melhor?

Nilza Farina Michelin: Não, está paupérrimo..

Mas o que precisaria acontecer? Surgir uma liderança diferente, é isso?

Nilza Farina Michelin: Não vejo nenhum candidato, é uma pena, Bento precisa de um sujeito de pulso. Bento está gasta, não tem base de liderança. Se uma mulher se candidata, caem em cima e acabam com ela.

Certa vez quiseram que a senhora se candidatasse a vereadora, não?

Nilza Farina Michelin: Sim, mas não aceitei. Primeiro porque sabia que o Édalo não me deixaria, era muito ciumento. E sempre teve medo que eu ficasse na frente; eu ia ficar, as minhas ideias com as dele não combinavam. Eu queria um governo para o povo. Mas o Édalo não me deixaria, me cortava, era muito esquentado.

E por que a senhora deixou que ele lhe ‘cortasse’?

Nilza Farina Michelin: (longo suspiro) É La vita...

A senhora tem ajudado várias entidades beneficentes?

Nilza Farina Michelin: Tenho procurado ajudar. Também presidi a APAE. Um bom prefeito tem que ter um grau de dependência da esposa. Senão não dá certo.

A senhora acha importante que ele tenha uma esposa atuante e seja ouvida por ele?

Nilza Farina Michelin: Isso. Se naquela época eu tivesse aceito concorrer a vereadora, a essa hora estaria com o cargo de governador. E pode ter certeza de que eu iria espionar em casa as pessoas, botaria alguém, não sei quem, mas honrado, no governo, e era capaz até de ir dormir com ele para ter certeza de que nem de noite nem de dia se arriscaria a pegar um centavo dos outros. Ia ter que trabalhar duro, porque se transparecesse alguma sujeira, ‘mi lo copava’!

E quando Darcy, que a senhora trabalhou tanto para eleger, venceu, foi bom governo?

Nilza Farina Michelin: (silencio)... é muito ingrata essa história de ser eleito. Não há preparo de formação escolar para representar esse papel. Agora, para fazer uma coisa decente, eles têm que se desfazer de muita coisa.

E será que isso não acontece em todos os partidos?

Nilza Farina Michelin: É, por isso que o Brasil não vai pra frente.

Talvez as Donas Nilzas não aceitaram concorrer a vereadoras, o que teria mudado a história. A senhora tem um sonho? Ou teve um sonho que não realizou ainda?

Nilza Farina Michelin: A cabeça da mulher... Desde que Deus fez o mundo, sempre tem um dia em que a mulher dá a máxima burrada na vida dela. E precisei chegar aos 99 anos para perceber. Eu poderia ter estado lá, como Prefeita, mas deixei escapar a oportunidade, quando me convidaram para concorrer a vereança. Não quero falar para me exibir. Sou neta de imigrantes italianos, meu avô, o Babo, é lindo, um homem maravilhoso. E sabe o que ele dizia sempre? ‘Orgulhem-se de ser italianos’. Aqui se instalou, construiu sua metalúrgica, foi louvado por todo freguês dele por sua correção, tudo na seriedade. Então todo o pessoal ia franco com ele: ‘tchó, Farina! Tchó, Bepi!’. Ele aqui foi respeitado e recebeu o título de comendador, mas nunca perdeu a humildade. Todos que olham a sua fotografia hoje, acham que ele era brabo. Não, ele era um doce. Ele amava as crianças e estava sempre na oficina. Uma neta dele, todos os dias entrava na oficina e lhe dava um beijo. Não lembro quem era a neta, Farinas tem bastante, só não têm farinha na cabeça! É tudo de boa cabeça! E boa metalúrgica.

E agora, o que a senhora gostaria de fazer?

Nilza Farina Michelin: Eu precisaria ir ali no centro e encontrar uma senhora que encontrei numa loja, ela estava usando um vestido simples de meia manga mas tão lindo, tão lindo, de cor verde, passou por mim e fiquei olhando, encantada. Na hora perguntei e ela me falou que tinha feito ela mesma o vestido. Depois ela saiu, eu me atrapalhei e não perguntei onde tinha comprado o tecido. Tentei achar nas lojas aquele verde lindo mas não encontrei. E procurei a tal senhora, mas não achei mais...

Perdeu a mulher do vestido..?

Nilza Farina Michelin: Perdi...

A senhora quer um vestido verde.

Nilza Farina Michelin: Eu quero o tecido, AQUELE. Para fazer um vestido pra mim.

E seu dia a dia?

Nilza Farina Michelin: Meu marido comprou um prédio. Eu não fiquei sabendo, porque ele tinha a agência Ford e fazia os negócios. Eu sei que um belo dia fomos no cartório, era sábado, um calor infernal e tinha muita gente lá. O dono do prédio também estava ali. Eu puxei, muito atordoada, o meu cartão de crédito. Os filhos do dono do prédio ficavam no meu lado porque a mãe deles tinha prometido uma parte do dinheiro. Eu paguei. Só então vi o que comprei. Fazia tanto tempo que eu queria uma casa, quando vi, pensei: será que agora vai me dar esse monstro de dez andares? Então, hoje, pra cuidar de mim e desse lugar tenho seis mocinhas, me mimando; levanto e já vejo mocinhas para me ajudar na ginástica.

E daqui pra frente?

Nilza Farina Michelin: Édalo abriu a concessionária Ford, trabalhava dia e noite, depois colocou um por um os seus irmãos. Não tive filhos, não tive preocupação, sempre tive uma boa empregada para fazer tudo e eu, pelas ruas curvas de Bento Gonçalves, passeei muito, passeio muito. E viajei muito. Vou viajar de novo.

Nilza Farina Michelin nasceu no dia 11 de março de 1916, filha de Egídio e Balbina Brévia Farina e neta de José e Luiza Monetta Brévia e de José e Sophia Bertani Farina, uma família tradicional, dedicada ao ramo metalúrgico, que morava onde hoje é o Bairro São Francisco, em Bento Gonçalves, Rio Grande do Sul. Na infância, seu prazer não eram as bonecas e, sim, jogar bolinha de gude com os meninos, de quem ganhava sempre, e andar de carrinho de lomba, divertimentos não exatamente consentido pelos pais, bem pelo contrário. Mas a menina vivaz e cheia de alegria lavava os pés antes de voltar pra casa e sabia chegar bem arrumada, depois de brincar, acreditando assim não levantar suspeitas. A mãe, preocupada com a filha, logo tratou de encaminhá-la para o curso de habilidades domésticas das senhoras da Igreja,  próximo de casa. No entanto, as compreensivas e carinhosas senhoras que Nilza passou a admirar, também acabaram tornando-se suas cúmplices de esconderijo da longa meia de nylon que servia de abrigo a todas as centenas de bolitas ganhas pela menina nas disputas com os meninos. Tornou-se tão boa na brincadeira que o desafio da gurizada era vencer de Nilza. Ninguém!

Mas o tempo encarregou-se de revelar uma jovem linda, habilidosa, decidida e destemida, uma mulher à frente de seu tempo. Namorar? Não estava nos seus planos. Mas sabia que seu primo-irmão a admirava ao ponto de, um belo dia, lhe permitir levá-la para o altar. Assim, aos 22 anos de idade, no dia 30 de abril de 1938, Nilza casou-se com Édalo Michelin, que a amou profundamente, a seu jeito, não deixando de tentar controlar os ímpetos de uma mulher tão diferenciada. Mas Nilza não fez disso um tormento, pelo contrário. Decidida a ser feliz, mesmo respeitando as limitações, não deixou de semear a alegria à sua volta. Até hoje, com cem anos de idade, ama a si mesma intensamente, toda semana arruma seu cabelo com a mesma cabeleireira e faz as unhas.

Tornou-se exímia cozinheira pois Édalo era de boa mesa e, em casa, ele não admitia que outra pessoa colocasse as mãos na comida a não ser ela. Enquanto vivo, Édalo levou Nilza todos os sábados às cinco horas da manhã para a feira, inverno ou verão, para garantir a escolha dos melhores produtos – ovos, manteiga, frutas e verduras, que ainda não tivessem sido manuseados pela clientela. Nilza aprendeu a fazer doces primorosos e sua especialidade, o pudim de nozes, virou receita cobiçada pela família, assim como os pudins de coco, quindão e laranja.

O casal não teve filhos, tinham um ao outro. Companheira exemplar do marido, Nilza o fazia sentir-se seguro e tranquilo a seu lado pois ela providenciava absolutamente tudo – roupas e calçados impecáveis, camisas passadas com esmero, ternos engomados quando necessário a um companheiro vaidoso. Nas viagens a São Paulo ou para águas termais, Nilza foi sempre com Édalo, levando consigo uma maleta-farmácia que tornou-se famosa pois nada faltava ali; afinal, Nilza dizia que tinha “um marido rebelde, que sempre fazia o que bem entendesse”. Em tempos não tão modernos, a tal maleta continha espirradeira, caneca para chá, injeções e seringas que precisavam ser fervidas e Nilza aplicava ela mesma as injeções pois quando Édalo abusava à mesa e sentia mal-estar ela mesma o medicava. Em determinada ocasião, numa estação de águas termais, após Nilza ter atendido o marido com sua maleta, um médico que a observava perguntou se era médica, enfermeira ou que formação possuía pois ela o havia medicado corretamente.

Quando jovem, Nilza queria poder dirigir seu próprio carro, mas, naquela época, Édalo não queria chocar a sociedade com dois automóveis para uma única família, ainda mais sem filhos. Então, um belo dia, num sorteio em prol das obras do novo Clube Aliança, que Édalo tanto ajudou e adquiriu diversos números da rifa, Nilza foi contemplada com o primeiro lugar, um Fuca! E passou, assim, a dirigir feliz pela cidade e região! Devotos de Nossa Senhora de Caravaggio, seguidamente os dois iam ao Santuário em Farroupilha. Organizada, costumava vangloriar-se de não se deixar esperar; estava sempre pronta antes do marido para ir a qualquer lugar pois ele tinha o hábito de ser um dos primeiros ou o primeiro a chegar nos jantares, bailes e compromissos. O casal costumava sair todos os domingos, especialmente a festas no interior a convite dos clientes da Agência Ford, dirigida por Édalo, que gostava de prestigiar seus clientes com Nilza, sempre pronta a acompanhar. Quando saiam com convidados para passear ou jantar, Édalo não admitia que os convidados colocassem a mão no bolso; a despesa era sempre por sua conta. Por isso Nilza o chamava de “paganin”.

Tanto Édalo quanto Nilza, gostavam muito de política e participavam ativamente das campanhas e comícios da extinta ARENA. Enquanto Édalo atuava no partido em apoio aos candidatos de situação, Nilza e Anna Variani, sua grande amiga e importante líder feminina da história bento-gonçalvense, iam de Fuca para o interior do município mobilizar as mulheres para votar em seu candidato, o que garantiu a vitória de Mário Mônaco após décadas de domínio de partidos ditos de esquerda no município (PTB e MDB). Por essa atuação tão forte, Nilza chegou a ser convidada para concorrer à vereança, um convite que marcaria para sempre sua memória. Na hora a fez balançar, seria uma realização pessoal, mas também um sonho impossível, sabia que Édalo não lhe permitiria e, assim, simplesmente, agradeceu sem aceitar.

Nilza dedicou-se ao marido intensamente até seu último momento. Aplicado ao seu negócio, Édalo não teve tempo para realizar os sonhos do casal de viajar para o exterior. Faleceu tendo realizado apenas uma viagem, para os Estados Unidos, numa homenagem da Ford Interancional. Somente depois de sua morte Nilza pôde, então, já beirando os 80 anos de idade, conhecer o mundo e o fez com propriedade. Viajou inúmeras vezes aos quatro cantos do planeta, de todas as maneiras, sempre muito divertidas, para ela e para quem a acompanhou. Incansável, sempre chamando à ação mesmo das amigas mais jovens que lhe acompanharam, para aproveitar ao máximo cada expedição. Chegou a ir sete vezes ao Sambódromo durante o Carnaval do Rio de Janeiro, com idade avançada. E foi nessas expedições que conheceu uma grande amiga de viagens, Geraldine Tisser, de Porto Alegre. Com ela e com suas sobrinhas, Nilza tem vivido momentos inesquecíveis. Numa ocasião, Nilza viajou de ônibus a capital gaúcha para, de lá, voltar com as amigas numa excursão a Bento Gonçalves em visita ao Vale dos Vinhedos, Caminhos de Pedra, etc, e, à noite, dormir no Hotel Vinocap que fica a uma quadra de sua casa, acompanhando as amigas, na maior diversão!

Ao longo de sua vida, Nilza participou - e ainda participa - de incontáveis ações beneficentes. Nos idos tempos, realizou chás com louças emprestadas, que eram buscadas e devolvidas em balaios a cada encontro. Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais, Liga de Combate ao Câncer, Projeto Esperança - Dina e tantas outras iniciativas já contaram com seu apoio. No período de 30 de março de 1973 a 10 de julho de 1977, Nilza Michelin presidiu a Associação dos Pais e Amigos dos Excepcionais de Bento Gonçalves - APAE, tendo em sua diretoria Julieta Sassi Dreher, Elda Fasolo, Jaci Da Ré, Voemy Pedrali Fontanella, Remy Reali Leites, Normélio Pedro Neis, Wilmar Neis, Maria V. Valduga, Cid S. Umpierre, Carmem Bertholdi, Margarida Arioli, Redovino Signor e Francisco A. Pozzer.

Em outubro de 1976, Nilza Michelin participou do VI Encontro das APAEs Gaúchas, realizado em Santa Cruz do Sul/RS. Durante o VIII Encontro de APAEs, realizado em Uruguaiana/RS nos dias 30 de abril a 1 de maio de 1977, Nilza Michelin representou Bento Gonçalves. O encontro que reuniu 46 presidentes da entidade no estado, contou com a presença do então presidente da Federação Nacional das APAEs, coronel Borba Maia, do prefeito de Uruguaiana, Dario Rodrigues, do embaixador Batista Luzardo, e do presidente da Assembléia Legislativa, Nivaldo Soares. Na ocasião foram homenageados seis presidentes de APAEs gaúchas, dentre eles, Nilza Michelin, que recebeu um cartão de prata pelos relevantes serviços à causa em Bento Gonçalves.

Em agosto de 2001, a APAE de Bento Gonçalves comemorou 35 anos e seu presidente de então, Zeferino Sabbi, homenageou todos os ex-presidentes que receberam uma Placa confeccionada pelos próprios alunos. Na ocasião, a ex-presidente Nilza Michelin discursou em nome de todos os homenageados, dizendo que havia sido escorraçada de muitas empresas quando buscava contribuições para a instituição. “Uma vez eu disse para um empresário: tomara que o senhor nunca tenha um filho excepcional que precise da APAE”.

Em setembro de 2006, ao comemorar 40 anos de atividades, a APAE de Bento Gonçalves homenageou ex-presidentes, conferindo a Distinção a Nilza Michelin que a recebeu das mãos do então presidente José Oro e dos alunos Sérgio Poletto e Greice Berton. O dia 6 de setembro de 1994 amanhece com uma salva de fogos de artifício anunciando as comemorações dos cem anos de fundação da Casa Concórdia da maçonaria bento-gonçalvense, inaugurando também o monumento da praça Centenário, obra do artista plástico Orlikowski. À noite as comemorações seguiram com jantar festivo no Clube Botafogo que contou com a presença do Soberano Grande Comendador do Supremo Conselho, Aristides Elias da Silveira. Na ocasião, Nilza Michelin, junto a demais beneméritos, recebeu a Medalha do Centeário.

Em maio de 1974, Nilza Michelin participou do Curso Complementar para Agentes de Atuação Social e Comunitária, promovido em Porto Alegre pela Unidade de Serviços Sociais da Secretaria do Trabalho e Ação Social do Estado, recebendo diploma do então Secretário do Trabalho e Ação Social, Alcides Pozzobon. No dia 13 de junho de 1978, durante os festejos do Centenário da Festa do Padroeiro Santo Antônio, em Bento Gonçalves, Nilza Michelin foi homenageada com o Diploma de Honra ao Mérito por sua contribuição como Festeira de Santo Antônio em junho de 1956. O Diploma foi assinado pelo Vigário Padre Oscar Bertholdo. Junto com outras senhoras abnegadas da sociedade de então, como Virginia Baldi e Elda Reali Fasolo, Nilza Michelin presidiu a Comissão para angariar fundos, através de um livro ouro, destinados a mobiliar a nova sede do Clube Aliança de Bento Gonçalves.

No ano de 2006, inspirada no filme “Garotas do Calendário”, a Liga Feminina de Combate ao Câncer reuniu onze senhoras da sociedade, voluntárias e colaboradoras da causa, que posaram para as lentes fotográficas, integrando um lindo calendário depois comercializado, angariando fundos destinados à aquisição de uma aparelho de ultra-sonografia para o diagnóstico precoce de câncer. Nilza Michelin foi uma das 11 senhoras em fotos que chamaram a atenção nacional. Estava então com 90 anos de idade. Prestativa e solicita, tem assistido familiares, amigos e pessoas que necessitam de auxílio. Generosa, gosta de presentear a todos com carinho e de conversar com muito bom humor!

Caroline Pierosan