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17/07/2019

O Valioso Resgate do Talian

O dialeto criado pelos pioneiros italianos é, finalmente, reconhecido como patrimônio imaterial brasileiro

O INDL promove a valorização das línguas portadoras de referência e à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira O Instituto Nacional de Diversidade Linguística (INDL), concedeu ao Talian e a duas línguas indígenas do tronco Tupi (família Tupi-Guarani, o Asurini e o Guarani Mbya) o título de Referência Cultural Brasileira. Significa que elas terão apoio do governo para executar ações que incentivem a preservação do chamado patrimônio imaterial "Mérica, Mérica" é talian, assim como a designação de diversos pratos típicos, ou as conversas animadas de programas de rádio e peças teatrais Entretanto há um temor: a de que a descontinuidade do Talian seja uma questão de tempo, talvez de poucas décadas

Até setembro de 2014, não existia no Brasil nenhum tipo de salvaguarda oficial às centenas de formas de expressões linguísticas que contribuiram para a formação da língua portuguesa. Mas agora o Instituto Nacional de Diversidade Linguística (INDL), concedeu ao Talian e a duas línguas indígenas do tronco Tupi (família Tupi-Guarani, o Asurini e o Guarani Mbya) o título de Referência Cultural Brasileira. Significa que elas terão apoio do governo para executar ações que incentivem a preservação do chamado patrimônio imaterial.

Chineses, alemães, franceses, poloneses, dinamarqueses, ucranianos, russos e japoneses, entre outros povos que emigraram para o Brasil, deram enorme contribuição a nossa língua, mas o Talian foi uma das formas de expressão que mais se destacou. Passados quase 140 anos da chegada dos pioneiros, o dialeto continua enraizado nas regiões Sul e parte do Sudeste, embora cada vez menos praticado na zona urbana. “Mérica, Mérica” é talian, assim como a designação de diversos pratos típicos, ou as conversas animadas de programas de rádio e peças teatrais. Entretanto há um temor: a de que a descontinuidade do Talian seja uma questão de tempo, talvez de poucas décadas…

Ridicularização e Medo

É provável que o reconhecimento encha de lágrimas os olhos de milhares de agricultores cujos os horizontes jamais foram além de Forqueta, Monte Belo, Santa Teresa ou Nova Pádua. A emoção talvez não seja necessariamente pela valorização do Talian, e sim, pelo ressentimento dos anos em que o governo brasileiro, no auge da Segunda Guerra Mundial, obrigou-os a falar apenas o português.

A restrição valia para pessoas de origem alemã, italiana e japonesa, países que formavam as Potências do Eixo. Mágoas que o tempo dificilmente apagará. “Meu pai conta que as pessoas preferiam ficar em casa ao invés de ir até a sede do município”, relata o empresário Arcângelo Zorzi Neto, que passou a infância em Nova Pádua. “A proibição criou um sentimento de vergonha por ser de origem italiana”, acrescenta.

“Tenho o depoimento de uma pessoa que estava em uma bodega, conversando animadamente com dois rapazes. De repente, um desses rapazes soltou uma frase em talian. Um guarda que ali estava fez de conta que não ouviu e não fez nada. Pouco tempo depois, este mesmo rapaz decidiu casar e quando estava no altar da igreja os policiais entraram e o levaram para a delegacia”, relata Vitalina Frosi, professora da Universidade de Caxias do Sul, estudiosa da colonização italiana e pesquisadora do Talian. “Eles emudeceram. Mandavam fazer compras somente os que sabiam falar um pouco de português”.

O estigma começou pouco antes do início da II Guerra Mundial, mais precisamente com o decreto de criação da Campanha de Nacionalização do Ensino e da Educação, por Getúlio Vargas. A campanha chegou rápido à região da serra por representantes do governo, principalmente nas escolas. Quadros com figuras italianas foram retirados e substituídos por brasileiras; professores não-brasileiros foram imediatamente afastados. “O (imigrante) italiano era ridicularizado”, diz Vitalina. “Quem era surpreendido falando dialeto era torturado ou humilhado. “Até mulheres foram presas”, assinala a historiadora Cleodes Ribeiro Piazza, de Caxias do Sul.

Pronúncia

A este sentimento de menosprezo, soma-se outro que afetaria as gerações seguintes de um modo igualmente intenso, que foi (e ainda é) o modo como descendentes pronunciam certas palavras. A verbalização de substantivos, como carroça, carro e carretel ocorre suprimindo um dos erres, pois no idioma de origem não há essa vibrante forte para duplicar o encontro de duas consoantes. Também fica complicado pronunciar palavras em que apareça a letra xis. Assim, ao invés de “vamos para Caxias” escutamos “vamos para Cacias”.

O som nasal que sai pela boca e nariz é marcado na língua portuguesa pelo til, sinal inexistente no italiano. Eles não conseguem dizer banha, como nós. Ouve-se algo como baainha, comenta Cleodes Piazza, neta de trevisanos. “O aparelho fonador deles era diferente do nosso”, explica. “Eles foram obrigados a falar uma língua que não era deles. E pior: falar sem saber o que diziam”, assinala a professora Vitalina Frosi.

Os pais se esforçavam em falar português para que seus filhos não fossem objeto de risada. Muitos universitários descendentes de italianos ainda hoje sentem-se envergonhados quando são chamados para ficar de pé na frente dos colegas para apresentação de um trabalho. Alguns admitem que ficam com medo por não conseguir dizer palavras simples como mão. O som sai aberto, mon.

Sobrevivência

Foram necessárias três décadas e meia, após o desembarque das primeiras levas de imigrantes, para o Talian ganhar consistência. Até hoje é um dialeto sem gramática, todo conhecimento é oral. Daí a importância do tempo para codificar o som de palavras como cavalo, pronunciada caval por uma pessoa nascida em Milão e caal, por alguém de Bergamo. Para a professora Vitalina, todo dialeto possui três características: é instável, passivo e restrito. “O instável significa que está se resolvendo em português; o passivo é porque muita gente entende, mas não fala; o restrito é a grupo de pessoas idosas”, ensina. Especificamente sobre o item restrito, a ameaça é que que não existem mais comunidades rurais típicas. “O pessoal tem internet, celular, trabalha na cidade e tem contato com pessoas urbanas”

Nas colônias de assentamentos, os dialetos foram conservados por causa do isolamento ditado pelo Império, mas com o tempo o modo de falar começou a ganhar certo padrão de comunicação a partir de quatro grandes grupos: os vênetos, numericamente maiores, os lombardos, trentinos e os de Venécia Júlia (há registros de grupos minoritários de emilianos e romagnoles). Os linguistas chamam este padrão de koiné (do grego, fala comum). O koiné da Serra Gaúcha foi denominado de Talian.

Para entender a formação do talian é preciso regressar no tempo e nos situarmos ao norte da Itália do Século XIX, antes do processo de unificação, ocorrido em 1865, período em que milhões de pessoas, para fugir da fome e da miséria, buscavam em outras partes do mundo aquilo que o Estado deixou de lhes proporcionar. O ponto de convergência dessa massa de desesperados era o porto de Gênova. Ali houve o encontro não de um, mas de vários dialetos, 36 para ser preciso, um para cada uma das 36 províncias. Dá para imaginar o surrealismo de uma família de Belluno ou de Vicenza, cada um com suas peculiaridades de fala, tentando conversar com famílias de Cremona ou de Milão.