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For All Exclusive

03/01/2019

Um Grito de Tinta

Por meio da arte Carlos Latuff dá voz ao protesto Palestino

Chamam de terra santa. Se aquilo ali é santo, eu não quero ver o profano. Já verteu muito sangue ali. Foto: Caroline Pierosan Carlos Latuff é a própria simplicidade, longe de ser simplório. Foto: Caroline Pierosan Ou se convive no mesmo espaço ou se extermina os palestinos. Mas na bomba não se vai conseguir. Ou se convive ou é a barbárie. Foto: Caroline Pierosan "Estado democrático de Direito "- é um unicórnio. Não existe. Mas é preciso ter essa figura para que você se sinta na democracia. Ela é o xeque mate,  é a matrix, ela não existe mas você acha que existe. Foto: Caroline Pierosan Hoje vivemos um fenômeno interessantíssimo: eu não vejo nenhum, nenhum segmento da mídia apoiando os palestinos. Foto: Caroline Pierosan

* Quem vê e não conhece, tem dificuldade de acreditar que o famoso cartunista reconhecido internacionalmente é o tal barbudo, de calça de abrigo, tênis Allstar e camiseta verde. Latuff é a própria simplicidade, mas está muito longe de ser simplório. O ativista político, que começou a trabalhar como ilustrador em 1989 numa pequena agência de propaganda carioca hoje é considerado um dos mais importantes chargistas do mundo. Por meio da arte ele dá voz ao seu grito de protesto: “vejam a situação da Palestina!”. A partir dos do desenho, Latuff luta para informar o mundo sobre quem são, o que querem e como sobrevivem hoje, os palestinos.

NOI: O mundo tolera a barbárie em Gaza por desinformação?

Carlos Latuff: Precisamos procurar entender o que as pessoas entendem sobre o conflito. Provavelmente a maioria nunca esteve lá e acompanha a situação pela imprensa. Se você se crê informado sobre a situação na Faixa de Gaza pela Zero Hora, por exemplo, sua situação está braba. Não existe informação isenta, ninguém é isento na vida. A imprensa nunca é imparcial. Mas hoje vivemos um fenômeno interessantíssimo: eu não vejo nenhum, nenhum segmento da mídia apoiando os palestinos.

Sua obra retrata uma situação brutal de desigualdade. Você considera o conflito tão desequilibrado assim?

Quando se fala na situação se menciona sempre as obrigações dos palestinos e os direitos dos israelenses. Quando o palestino resiste e atira um misselzinho feito em casa todos consideram isso um absurdo, o fim do mundo. Mas dai vem Israel e destrói um quarteirão inteiro porque tinha um alvo em uma casa e a ação é considerada legítima. Não existe equilíbrio mesmo. Mandar bomba pelo ar, arrasar quarteirões inteiros, o que é isso? Por que só Israel pode se defender? Direito de Defesa? Genial, só serve para Israel. Se não tivermos senso críticos acabamos reproduzindo a falácia de que a vítima é um agressor e o agressor é a vítima... 

Os palestinos são as vítimas da situação então?

Qual a palavra que vem de imediato a mente quando se fala em palestino? Terrorismo. Então é muito fácil você taxar o Hamas de terrorista, de terrorismo Islâmico. Na época da Guerra Fria tínhamos a União Soviética e os capitalistas. Essa polaridade rendeu conflitos por todo o planeta. Os EUA justificavam suas ações dizendo que era para combater o comunismo. Quando caiu o muro, criaram o inimigo muçulmano. O comunista não assusta mais, então se projeta o medo no islâmico. Hoje o terrorista é o inimigo e o Hamas é o terrorismo. O que a imprensa não lembra é que o Hamas ganhou as eleições em 2007. A população palestina não confia mais nas autoridades. O Hamas se tornou a alternativa e ganhou. Os americanos fizeram eleições em Israel para dar um ar democrático, mas é tudo um jogo de cartas marcadas. O Hamas ganhou mas não levou, porque os EUA não reconheceram a legitimidade do resultado. A partir daquele momento isolaram o Hamas em Gaza. Cria-se essa crença que o Hamas é terrorista então não se negocia, mas o Hamas é governo eleito! A imprensa nos passa a impressão de que são um bando de malucos, mas eles não são.

Como você assimila a origem do conflito?

Quando falamos de palestina tem sempre um zé mané que menciona a época de Cristo. Vamos esquecer isso! Analisemos a partir da colonização. O lugar é disputado porque tem o Muro das Lamentações? Não! É interesse geopolítico. Ali tem saída pelo mediterrâneo, chega-se a África, Ásia e Europa muito facilmente.  Durante a Segunda Guerra Mundial, judeus ciganos e muita gente foi massacrada pelos nazistas e ao mesmo tempo havia o programa de eliminação física dos judeus. Essa matança fez com que o movimento sionista que procurava um local para estabelecer Israel surgisse na Palestina. O local era importante para as potências mundiais, principalmente os EUA. Então os judeus fugidos da Europa foram em barcos aos milhares para a Palestina. Só que ali tinha gente. Não era um deserto só com camelos e ovelhas, tinha gente! Mesmo assim eles se instalaram e começou o conflito. Essa quantidade de gente fugida foi aumentando exigindo mais espaço, conflitos aumentando, até que a ONU resolveu intermediar. A ONU chegou e falou: vamos criar dois estados um para os árabes e outro para os judeus, só que mais refugiados de Israel continuaram chegando.  O movimento sionista que usa base religiosa para justificar suas ações dizia: isso tudo é nosso, Deus disse que é, então é!

Você acredita que o ideal de Israel seria exterminar os palestinos ?

Isso para mim já era certo. Em 2006 o Ariel Sharom havia tirado todas as colônias israelenses de Gaza. Ele já pensava em divisão, visando a conquista do território. O estado de Israel foi fundado com a ajuda de três organizações terroristas judaicas. Já se mostrou isso na TV? Parece que Israel chegou pacificamente, pediu licença e foi se chegando. Não. Foi através da força do terror que eles impuseram. Israel não tem base moral para falar sobre terrorismo.

Você acredita que a Palestina corre o risco de ser dizimada por Israel?

A população só cresce. O palestino faz muito filho. A criança é o futuro combatente, por isso Israel ataca tanto as crianças. Eles praticam a punição coletiva. Se existe a casa de um manifestante, eles acabam com o quarteirão todo. Quer fazer a coisa justa? Deixa a Rússia armar os palestinos. Ai eu quero ver... A solução para esse conflito não é militar. É preciso que os dois povos convivam no mesmo território. Mas para quê? Para quê paz se eu ganho mais com guerra? Mas isso não é nem guerra, porque o Hamas não tem míssil, não tem exército, não tem arma militar... isso é um massacre.

Como você interpreta esse último episódio do conflito?

Lembram dos três colonos israelenses que foram mortos? Os três colonos judeus. Encontraram os três rapazes mortos e acusaram o Hamas. O Hamas virou o bode expiatório. Lá quando qualquer coisa acontece foi o Hamas que fez. Benjamin Netanyahu, que é um psicopata, determinou que os palestinos deveriam ser punidos. Mas vamos analisar as notícias precedentes. Lembra que houve um encontro entre Hamas e Fatah para decidir a reunificação? Isso amenizaria o isolamento político do Hamas que deixaria de ser um ícone do terrorismo para ser reconhecido como um agente político legítimo. Isso Israel não consegue admitir. É determinante para eles que o Hamas permaneça terrorista. Depois foi divulgado que a morte dos colonos nada teve a ver como o Hamas, foi um crime comum. Mas agora ninguém mais lembra! Vocês acham que o Hamas depois de ter feito um acordo desse iria matar três jovens? Seria passar um atestado de imbecil. Eles por acaso fariam isso depois de fazer um acordo com o Fatah que os desisolava? Mas Israel disse que é e é. Então é.

E os foguetes que a Palestina não para de mandar?

Acompanhei ataque a Gaza em 2006, 2008 para 2009, 2012 e agora em 2014. A Palestina é território ocupado. Se esses foguetes são enviados é porque existe uma ocupação. Se a colonização das Américas tivesse sido realizada por Israel, os Astecas, Maias e Incas seriam terroristas. A imprensa coloca em nível de igualdade a ação do Hamas e de Israel. Como assim? A resistência do ocupado não pode ser comparada com a violência do ocupante. O que são as favelas senão territórios ocupados. O que tem na favela? Tem gente? Não, tem bandido não é? O que tem em Gaza? Terrorista...

Essa seria a grande justificativa de Israel para a ofensiva?

Você precisa desumanizar para justificar a violência. Vamos fazer um paralelo entre Brasil e Palestina. O Netanyahu disse que os palestinos são animais. Na escolas israelitas se ensina que eles são animais. Eu estive em Jerusalém em 98 e fui a um estande de tiro. Perguntei: “para que vocês estão treinando?”, e eles responderam: “para matar palestinos”. Quando se implantou as UPPS no RJ, vocês viram os tanques entrando nas favelas, os traficantes fugindo. Não tem gente na favela né, então palmas para eles! Hoje os israelenses batem palmas para as bombas que caem.

Israel afirma que precisa destruir os túneis palestinos...

Os túneis existem. Mas servem para burlar um bloqueio econômico. Falta todo o tipo de coisas em Gaza. Se você bloqueia uma região as pessoas vão dar o jeito delas. De alguma forma elas vão passar comida, remédio. Não são túneis do terror. Nada que entra em Gaza entra sem autorização de Israel e do Egito. E eles trabalham juntinhos. Se hoje, você defender os palestinos em Israel, você corre o risco de apanhar. Estão organizando grupos fascistas dentro de Israel. Manifestantes pró-palestina em Israel são vítimas dos fascistas. Os imigrantes africanos em Israel estão sendo perseguidos. Tel Aviv vive um frenesi nacionalista. A verdade é que o mundo está vivendo o ressurgimento da víbora fascista e nazista.

Como nós brasileiros podemos contribuir para o fim do conflito?

Podemos manifestar solidariedade para com o povo palestino hoje exigindo postura do Governo. Quando o governo brasileiro condenou os ataques,  Israel nos chamou de diplomacia irrelevante. Temos que pedir o fim da cooperação entre o Governo Brasileiro e Israel. Já está claro que essa ofensiva militar é desproporcional. As imagens são de chorar!

Por que a ONU não intervém mais severamente?  

No Conselho de Segurança da ONU, nada passa contra Israel. China, Rússia, EUA dão as cartas ali. Sabe como funciona a diplomacia israelense? Israel é o irmãozinho menor dos EUA. Faz o que quer fazer porque o mano maior vai defender. Os americanos são muito preocupados com a democracia né? Só que as ditaduras árabes vivem sob o financiamento dos EUA. O Egito poderia fazer a diferença hoje porque faz fronteira com Gaza em Rafa, mas ele colabora com Israel e EUA. Sou crítico de Israel e dos Árabes. A liga árabe é uma piada. A esquerda se quiser apoiar a Palestina não adianta protestar. Tem que cobrar do governo o boicote. Temos que promover na sociedade civil e nas universidades o boicote a Israel. O caminho seria um apartheid econômico.

Qual seria a solução para conflito?

Ou se convive no mesmo espaço ou se extermina os palestinos. Mas na bomba não se vai conseguir. Ou se convive ou é a barbárie. A esquerda que se prepare, porque vem tempos nebulosos. No Brasil usamos muito a expressão de “Estado democrático de Direito “- é um unicórnio. Não existe. Mas é preciso ter essa figura para que você se sinta na democracia. Ela é o xeque mate,  é a matrix, ela não existe mas você acha que existe. A ONU é a mesma coisa... quem manda é os EUA, mas a ONU serve para aliviar. É um carro sem roda, é um carro com pneus furados. Estamos caminhando pra a polaridade semelhante a guerra fria. Na guerra fria haviam dois blocos capitalista e comunista. Hoje somos capitalistas e capitalistas. Duas potências se degladiando, EUA e Russia.

É o tal do capitalismo ditatorial que você menciona?

Quem viveu aqui na época do regime militar (eu era garoto) lembra, era o tanque, a tortura, a censura. Quando ligávamos a televisão, antes de qualquer filme, novela, aparecia a liberação da censura federal. Isso é uma tosquera. Hoje não tem isso. Hoje o regime é mais sutil, reprime o manifestante, prende por presunção de culpa, mas é democracia, por quê? Eu to aqui falando isso e não fui preso por quê? Eu posso eleger meu candidato não é? Eu posso ir na maquininha e escolher o meu líder, pensam as pessoas. Hoje temos um grande problema, porque mais perigoso e mais danoso que uma ditadura é uma falsa democracia. O inimigo é difuso, não se sabe quem é. Tem o discurso do Estado de Direito, das instituições. O golpe de 64 foi uma revolução cultural. Hoje as universidades fast food produzem peças de reprodução para o mercado. Ninguém tem mais pensamento crítico. Em uma sociedade em que o professor é esculhambado como no Brasil, eu aprendo ou desaprendo com gente como William Bonner. Para que pensar? Deixa que eu penso por você... A Fátima Bernardes faz isso. Ela está todo dia na casa das pessoas. O currículo das escolas está cada vez mais delapidado porque está preocupado para formar para o mercado. Somos todos pilhas. 

“Estado democrático de Direito “- é um unicórnio. Não existe. Mas é preciso ter essa figura para que você se sinta na democracia. Ela é o xeque mate,  é a matrix, ela não existe mas você acha que existe. A ONU é a mesma coisa... quem manda é os EUA, mas a ONU serve para aliviar. É um carro sem roda, é um carro com pneus furados. Estamos caminhando pra a polaridade semelhante a guerra fria. Na guerra fria haviam dois blocos capitalista e comunista. Hoje somos capitalistas e capitalistas. Duas potências se degladiando, EUA e Russia. Hoje temos um grande problema, porque mais perigoso, mais danoso que uma ditadura é uma falsa democracia. O inimigo é difuso, não se sabe quem é" (Carlos Latuff)

 

* texto: Caroline Pierosan, publicado na edição setembro 2014 da revista NOI impressa