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Pelo Mundo

17/07/2019

Muçulmano na França / Francês Muçulmano

Uma caxiense que mora na França. Uma francesa que já morou no Brasil. Veja o que elas têm a dizer sobre o choque cultural que o país do iluminismo vive hoje

"Quando morava no Brasil eu não entendia bem o que era racismo. Aqui o sinto muito mais forte! Os árabes vivem muito fechados no mundo deles e resistem muito a absorver a cultura francesa" (Tatiana Zaballa) Fiona morou em Caxias do Sul durante dois meses em 2013, quando realizou intercâmbio pela Universidade de Caxias do Sul e estágio de graduação na escola Jardelino Ramos. Fiona graduou-se pela Universidade de Lion em 2013 e hoje vive em Compiègne, onde trabalha como psicóloga acompanhando apenados do sistema prisional francês

Tatiana Zaballa é natural de Caxias do Sul, onde nasceu no dia 06 de novembro de 1987. A jovem é graduada em Artes pela UCS e em História pela Universidade de Lion (França), onde também concluiu mestrado na mesma área.  Desde 2009 Tatiana decidiu morar na França (atualmente em Lion) por causa da tradição artística do país. Ela tem cidadania italiana, portanto pode residir, estudar e trabalhar tranquilamente, como qualquer outro francês.

Fiona Paladino nasceu em Mounpellier, sudeste da França, em 18 de dezembro de 1988. Criada  em Banlieui na região de Paris (onde morou até os 13 anos), residiu também em Lion, retornando para Mounpellier para completar os estudos em Psicologia. Ela frequentou um ano na Universidade de Bologna, em Cesana, na Itália e morou em Caxias do Sul durante dois meses em 2013, quando realizou intercâmbio pela Universidade de Caxias do Sul e estágio de graduação na escola Jardelino Ramos. Fiona graduou-se pela Universidade de Lion em 2013 e hoje vive em Compiègne, onde trabalha como psicóloga acompanhando apenados do sistema prisional francês.

A NOI conversou com Fiona e Tatiana para saber como elas avaliam o choque cultural entre franceses e árabes.

NOI: Vocês sentem que a cultura árabe as alcança de alguma forma?

Fiona Paladino: A influência é muito presente aqui, muito mais nas cidades grandes. Você percebe na comida, por exemplo. Nas lojas você vê frutas secas e tem a sessão de comida hallal (especialmente preparada para árabes). A música também tem influência. Temos artistas de hip hop como o Abd El Malik, que é muito famoso, já escreveu um livro e lançou o filme qu'Allah bénisse la france (que Alá bendiga a França). Algumas gírias também têm origem em palavras árabes. Você vê nas roupas a influência do estilo. A imigração dos países do norte da África (Argelia, Tunísia e Marrocos) – região de Maghreb – é antiga, começou depois da II Guerra. As pessoas vinham para trabalhar. Agora, debatemos muito sobre integração e a identidade francesa. Eu me identifico um pouco com eles (árabes) porque as origens da minha família são de outros países europeus. Minha mãe é inglesa e meu pai é filho de italianos. Desde criança, me diziam na escola que eu não era francesa como eles. Uma parte de mim consegue se identificar com esse sentimento de não ser aceita.

Tatiana Zaballa: Lion tem muitos árabes. Nos bairros mais humildes a concentração é bastante grande. Eles estão na margem da sociedade, nas periferias -  não estão bem incluídos. Quando morava no Brasil eu não entendia bem o que era racismo. Aqui o sinto muito mais forte! Os árabes vivem muito fechados no mundo deles e resistem muito a absorver a cultura francesa. Os filhos de imigrantes, que nasceram aqui, não se sentem franceses e não aceitam a França. Por exemplo na Copa do Mundo, quando a Argélia jogava, ninguém saía na rua porque eles (os árabes) quebravam tudo. Eles demonstram ter muita raiva da França. Talvez a política de inclusão não funcione como eles gostariam. A França tenta achar maneiras de integrá-los, mas avalio que elas mais excluem que ajudam. Por exemplo, as mulheres não podem usar a burca. Na escola as meninas muçulmanas têm que tirar o véu porque a escola é laica. E assim vai... Uma coisa que eu acho ruim é o Ramadã que dura um mês inteiro. Eles não comem durante o dia, só se alimentam quando o sol se põe. De noite tem festa na rua e tem lugares que não dá para ir. O que eu acho mais absurdo é que nessa religião (islamismo) eles não podem beber ou fumar mas, nesse período, durante a noite, é como se não existisse mais a regra e fazem o que querem. São legalistas. É uma gritaria na rua e a polícia não intervém. A polícia tem restrições a agir com eles porque teme ser considerada racista...

NOI: Como foi no dia do atentado?

T.Z.: Eu estava em casa. Fiz uma pausa para almoçar, liguei a TV e estava a maior bagunça. Já que aconteceu em Paris, eu imaginei que eles (a polícia) pegariam os caras (terroristas). Na mesma noite todo mundo se reuniu na praça em Lion, foram acesas velas e feito minutos de silêncio em homenagem aos mortos. O que me chateou bastante foi o fato de alguém ter sido atacado pelo que falou. Isso é um absurdo. Isso foi o que mais me incomodou. Eu li duas, três vezes o Charlie. Nunca comprei essa revista. Então me afetou mais por terem bloqueado essa ideia de liberdade de expressão.

F.P.: Eu fiquei muito triste. Na minha família nós não éramos leitores deste jornal. Eu sabia que ele existia, mas nós não éramos ligados a ele. Fiquei chocada porque se trata de um jornal muito aberto, extremamente de esquerda onde tudo pode ser publicado. Às vezes é bem ofensivo, exagerado, mas tem essa identidade muito forte de algo que faz o francês orgulhoso. Muitos franceses são conectados ao Charlie por isso. Por ser excêntrico, liberal até demais, mas pelo menos eles sempre puderam falar o que querem. Eu, como francesa me senti nua, atacada. Acho que foi isso que as pessoas sentiram. Eles (terroristas) tocaram num símbolo de liberdade de expressão. Eu estava no carro quando ouvi no radio que as pessoas tinham sido mortas. No dia seguinte foi muito intenso e estranho. A perseguição aos terroristas estava acontecendo na minha região, aqui em Picardie, onde moro. Foi surreal, como estar num filme.

NOI: Depois de tudo isso, o que mudou?

F.P.: Fui em uma manifestação em Compiègne. O encontro aconteceu na frente do palácio e eu quis ir como quem presta uma homenagem. Mas lá as pessoas estavam gritando coisas como liberté, égalité, fraternité e cantando La Marseillaise que termina com “faça com que sangue impuro suje nossas armas”, as letras eram violentas. E daí eu saí porque aquilo não correspondia com o que eu queria expressar. A passeata foi no dia dez de janeiro. Claro que foi chocante, assustador e impactou o país. O debate agora é – o que é ser um muçulmano na França e como é ser um francês muçulmano. Muitas pessoas agora estão bastante extremistas em relação aos estrangeiros e estão cada vez mais se posicionando porque ficaram muito assustadas.

T.Z.: Agora criaram uma lei ridícula... As pessoas que têm reações de acordo com essas ações, vão para a cadeia. Isso é o pior. Não é uma maneira de incluir, mas de excluir e piorar mais ainda. Por aqui os árabes sofrem. Tenho um amigo bem legal de origem árabe. Quando ele foi alugar um apartamento ninguém queria alugar para ele só por causa do sobrenome. No fim só foi possível porque ele conseguiu um ótimo fiador. Acredito que esses franceses (responsáveis pelos ataques ao Charlie Hebdo) buscaram na religião uma maneira de se sentir perto de alguma coisa porque não conseguiram se incluir.

F.P: Fé na França é um assunto muito complicado. Por causa da história do país, por causa do Iluminismo. A razão e a inteligência são a coisa mais importante por aqui. Uma pessoa esperta é uma pessoa que pensa. Aqui alguém que tem fé em qualquer coisa sobrenatural, para o imaginário coletivo é alguém mais fraco e bobo, ou estúpido. O catolicismo, por exemplo, foi muito rejeitado, então muitos intelectuais são ateístas (athée). Eu sou cristã protestante. Aqui, quando você diz que fé é uma coisa importante na sua vida as pessoas acham que você é um pouco esquisito. Alguns muçulmanos são apenas religiosos e não acham que o Islã deveria ser político. Como não é a religião da França, as pessoas pensam que é estranho porque vêm de outro lugar e têm medo que isso acabe tomando conta do país. O escritor Houellebecq chegou a escrever um livro (Soumission) sobre a França do futuro ser governada pelo Islã. Eu estou tentando viver minha vida, tentando não tomar partido. O que eu não quero é pensar que terei um dia que lutar por liberdade de expressão. Eu coloquei “Je suis Charlie” no facebook, mas depois perdeu sentido, porque as pessoas começaram a dizer – nós choramos por essas pessoas que morreram na França mas tem um monte de gente morrendo na África – acho que foi uma forma de dizerem - ei olha ao teu redor, tem pessoas sofrendo todos os dias...

NOI: Como você se sentiria se uma pessoa árabe tomasse seu lugar no mercado de trabalho?

Fiona Paladino: Bem, se alguém consegue uma vaga é porque mereceu. É um clichê neocolonialista dizer que eles são pobres e não ajudam e temos que ajudar a educá-los. Eles precisam de nossa ajuda é para entrar nessa sociedade.