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Pelo Mundo

31/05/2019

No Foco do Mundo

Uma irônica conquista…

"De repente uma vibração insistente no celular me despertou para algo incomum até aquele momento" "Depois de cinco dias na Holanda, minhas férias planejadas há tanto tempo e esperadas como uma final de campeonato entravam na segunda parte" "Naquele dia estive onde tudo se focou. Por coincidência, é verdade, mas nem por isso menos marcante" "E apenas observando, sem protagonizar, sem ser. Mas me senti no mundo. De manhã e pela noite. Uma conquista, irônica conquista..."

O sutil balanço do trem bordô de alta velocidade da Thallys e o conforto da poltrona 55, revestida em couro, naquele trajeto de costas para o sentido do deslocamento,  me induzia a um sono leve e ao mesmo tempo indesejável para um bom-jesuense que adoraria aproveitar cada segundo da cena, o Velho Continente passando pela janela. Tudo o que eu queria naquele momento era ver a paisagem que se levantava a Oeste, às 8h30 da manhã, revezando-se rápidamente com gigantes moinhos de vento, que naturalmente remetiam à imagem de um Dom Quixote em posição de ataque, ao sul de Amsterdam, entre Roterdam e o norte da Bélgica. 

De repente uma vibração insistente no celular me despertou para algo incomum até aquele momento. Uma ligação do Brasil. Não tinha recebido nenhuma desde a última quarta-feira. Falava apenas pela internet, valendo-me do Wifi gratuito em cada esquina.  No outro lado da linha, alguém perguntou se estava tudo bem comigo. “E com a namorada?”

 “Tudo bem? É claro.” Por que não estaria?

A manhã era ensolarada naquela terça-feira, dia 22 de março. Depois de cinco dias na Holanda, minhas férias planejadas há tanto tempo e esperadas como uma final de campeonato entravam na segunda parte. A ideia era passar um dia em Bruxelas e depois seguir para outros cinco em Paris. Em seguida, um final de semana em Milão, depois Lisboa. Tudo feito, fácil, bonito. Para alguém que nasceu nos Campos de Cima da Serra e que na infância tinha como objetivo maior viajar para Jaquirana a fim de defender a seleção de futsal mirim da cidade, estar na Europa não era das coisas mais corriqueiras. O que mais me incomodava quando morava em Bom Jesus era me sentir fora. As coisas não aconteciam lá. Tudo se passava em Caxias, ou Porto Alegre. Como eu queria estar no lugar onde as coisas acontecem! 

Portanto, estar por ali, depois de alguns anos de trabalho, era um prêmio! Gols e crimes, em resumo. Jornalismo esportivo daqui, relato de ocorrências policias dali, reuniões almoço no horário do intervalo. Foi possível pensar em férias diferentes. Só não imaginaria um dia estar exatamente no centro de tudo. Naquele dia estive onde tudo se focou. Por coincidência, é verdade, mas nem por isso menos marcante. E apenas observando, sem protagonizar, sem ser. Mas me senti no mundo. De manhã e pela noite. Uma conquista, irônica conquista…

Depois do “até mais” ao telefone, “corri” para o primeiro site de notícias que lembrei e lá estavam as notícias do atentado terrorista em Bruxelas. Olhei no GPS, estávamos a 340 km/h, na proa da capital Belga. O pensamento egoísta é antes de autodefesa. A primeira reação foi pensar se cometeriam a insanidade de passar conosco por um lugar de conflito. É claro que isso não aconteceria. Acordei minha namorada. Em dez minutos, estávamos parados. Pensei em escrever, relatar, avisar. Mas o alerta de bom senso gritou que eu estava em férias. “Nada de instinto jornalístico agora”, me propus.

O maquinista falou em holandês no sistema de som do trem. Não entendi nada. Depois falou em alemão. Os jovens mais barulhentos do vagão silenciaram. Em seguida, veio francês e por fim, o inglês que causou as reações mais audíveis dos passageiros. O sistema de transporte da Bélgica estava parado e nós estávamos chegando na estação de Antwerpen, a alguns quilômetros ao norte da capital atingida. A primeira reação mental foi do guri que adorava Geografia. “Caramba, Antuérpia. Eu lembro muito dessa cidade nos mapas. Eu vou estar aqui!”. É claro que me culpei por isso. Pessoas tinham acabado de morrer, era chocante.

Descemos do trem e fomos conversar com o primeiro representante da companhia que vimos. Ele estava na plataforma e logo foi cercado. Esperei que ele explicasse tudo em holandês, depois alemão, francês e só então tomei a liberdade de fazer a primeira pergunta em inglês. Enquanto o elegante funcionário grisalho, alto, bonitão, olhos azuis, com brincos chiques nas orelhas, esbanjava fluência e educação em cada palavra que falava, percebi que estava rodeado de norte-americanos. Em cinco minutos na plataforma foi possível conhecer mais histórias do que em toda a viagem de 17 dias. Na fila para o único banheiro liberado conheci uma moça de Nova York que me disse que torcia pelo Miami Dolphins. Coisas sem explicação…

Perguntei ao bonitão da Thallys se precisávamos ficar no trem ou descer para a estação, quem sabe buscar um trem de retorno a Amsterdam. “It's your decision”, me respondeu com um sorriso belga de quem tem o raro dom de ser sutil e cortês, mesmo quando seu coração sangra. Que lindo dom tem quem consegue se manter calmo na tempestade. Acho que não sei como se faz. Um rapaz da Philadeplphia que estava com a sogra – sim, a sogra – e um casal filhos pequenos resolveu descer da plataforma. Alugou um carro para chegar a Paris a tempo de pernoitar e pegar um voo para a Índia, onde passaria férias. Saudei-o pela escolha acertada. Coitado, tudo mudaria depois. Ele optou por uma viagem de oito horas. Não sei se chegou à França naquele dia, afinal as estradas estavam fechadas. A escolha de esperar se revelaria a mais acertada. Duas horas depois, estávamos cruzando a fronteira a bordo do maior trem do mundo.

Fomos levados em baixíssima velocidade até a estação de Louven. Estávamos a Oeste de Bruxelas, a uma distância como de Caxias a Farroupilha. Ali foram mais alguns minutos se deslocando para a frente e para trás. Não dava para entender nada. Os belgas tristes. Os norte-americanos impacientes. Pediam que não saíssemos. Ninguém sabia o que acontecia no país. Não era para acessar as ruas. Tínhamos que ficar no trem. Nos deram água, e só. O serviço de bordo estava cancelado.

O trem voltou a andar, rumo a Bruxelas. Uma curva à direita me deixou ver o tamanho dele. Era gigante. Não era o mesmo que peguei em Amsterdam. Só em Paris entendi que estávamos acoplados com todos os trens que vinham do Norte e que passariam por Bruxelas naquela manhã. Berlim, Frankfut, Amsterdam, Roterdam, Hamburgo, Oslo…O GPS mostrava a cabeceira do aeroporto de Zaventem. Olhei para a esquerda e lá estava a pista absolutamente vazia. Andamos mais um pouco e vimos um helicóptero em nossa direção. Nos acompanhou durante uma trajetória absolutamente lenta e silenciosa, que passou por todo o Leste de uma Bruxelas vazia. Estações pichadas, ruas pichadas. Parecia o subúrbio de uma cidade brasileira. O centro da capital da Bélgica ficou na visão, assim como o Atomium, monumento que se vê por cima de prédios. Durou uns 20 minutos a passagem por Bruxelas, mas para mim pareceram horas. E a sensação? Essa vou ficar devendo. As palavras ainda não aprenderam a descrever esse tipo de coisa.

Chegamos a Paris, antecipamos as reservas no hotel, que, graças a muito planejamento, ficava no lugar mais fácil da cidade para deslocamentos. Ir na Torre Eiffel era a pedida para a noite, é claro. O anoitecer veio a duas quadras do monumento para nós. A torre se revestiu de Bélgica. Mais uma vez, o centro das atenções estava ali. O mundo repercutiu a mudança de cor da Torre. Pela segunda vez no mesmo dia, eu estive ali, para onde todas as pessoas olhavam. Levamos um pouco de amor, só uma pitadinha, para celebrar a vida naquela noite. A Europa estava triste. Mas não insegura, coisa que não é.  Não sei mais se preciso estar onde tudo acontece, sempre. Por agora, quero só um pouco de solitude, assim como vivem os europeus. Discretos, silenciosos e inteligentes, a ponto de incomodar quem ainda caminha no rumo contrário ao deles. Um dia, quem sabe, chegaremos lá.

A maior tristeza para mim naquela noite foi perceber que não estava com medo e que me sentia muito mais seguro lá, apesar dos fatos dramáticos do dia, do que me sinto a cada segundo aqui. É uma dura verdade. Não há atentado terrorista pontual e esporádico que crie sensação de maior pavor do que a que sentimos toda hora, todos os dias, aqui na nossa vida real. Aqui não sabemos quando saimos para voltar. Lá, as pessoas oram por quem foi mártir de algo surreal e incomum. Aqui, rezamos por nós, rotineiramente. Que Deus nos proteja do terrorismo do dia a dia.

 

William Mota, Jornalista

 

“Não há atentado terrorista pontual e esporádico que crie sensação de maior pavor do que a que sentimos toda hora, todos os dias, aqui na nossa vida real”