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Viva Bem

17/07/2019

Corpo, Mente e Espírito em Desassossego: As Raízes da Doença

Lia Diskin afirma que o cenário avassalador de inquietação e a era do humanamente impossível representam um grande perigo para a saúde do ser humano  

"Será que o fato de termos conquistado tanta tecnologia tem de alguma maneira minimizado o sofrimento das pessoas ou contido as causas desse sofrimento? Me parece que não" "Nossa linguagem nos faz distinguir corpo de mente e espírito. Mas sabemos que nada disso existe de maneira isolada" "Nosso estado emocional, mental e físico cria um sistema, um ambiente ao redor de nós no qual se propicia conforto ou desconforto"

“O que aconteceria se eu convidasse um médico do século XVIII a entrar numa sala de cirurgia?”, pergunta Lia Diskin. Ele entenderia a função da pessoa totalmente blindada por roupas especiais e acessórios? Compreenderia o que faz o instrumentalista?”, questiona a professora. “Sem sombra de dúvidas nem saberia onde está”, afirma. “Será que o fato de termos conquistado tanta tecnologia tem de alguma maneira minimizado o sofrimento das pessoas ou contido as causas desse sofrimento? Me parece que não”, lamenta a Coordenadora do Comitê da Cultura da Paz – parceria Pallas Athena/UNESCO.

A seguir Lia, que também é jornalista e especialista em crítica literária, desenvolve uma série de argumentos sobre saúde e medicina moderna e alerta: o retorno às práticas integrativas é urgente e imprescindível para reencontrarmos o bem estar físico, emocional e espiritual.

O Avassalador Cenário da Inquietação

De acordo com Lia a ruptura entre o mundo da biosfera e a noosfera (das ideias) provocada pela modernidade, é responsável também pela ruptura de nossa compreensão da unidade intrínseca – corpo, mente e espírito. A professora afirma que, se a tal ruptura somarmos a mecanização do campo e o êxodo para os grandes centros urbanos (quando as pessoas muitas vezes deixam parte da família no lugar de nascimento e constroem outras famílias nas cidades), teremos o cenário das grandes transformações que o homem vem vivendo nos último 50 anos.

Para Lia, o impacto da tecnologia e a aceleração cada vez uma maior da geração de conhecimento desencadeia nas pessoas um profundo desassossego, que acomete a todos de modo geral. “Sentimos que não damos conta da quantidade de informação que precisamos processar e dos conhecimentos novos que devemos metabolizar. Pesquisas acontecem o tempo todo em cada âmbito ou segmento em que atuamos. Não conseguimos absorver. Tudo isso provoca um cenário avassalador de inquietação”, alerta.

O Sentimento de Inadequação Para Viver

“Tenho quatro ou cinco livros que comecei e não terminei, e mais ou menos 50 e-mails na caixa de entrada para responder, mas para isso preciso de tempo”, conta Lia. “Além disso, tenho que ver a peça, o filme, ir a tal festa, e obviamente muito mais importante que tudo, dar atenção aos que fazem parte do meu convívio familiar. Como conseguir atender? É humanamente impossível assumir todas as demandas. Todos os dias vamos deitar sabendo que deixamos uma lista de tarefas não concluídas”, afirma.

Essa é a realidade da maioria das pessoas. “Não bastasse isso que não está concluído no dia de ontem, quando o outro dia amanhece recebemos uma lista de novas tarefas que perturbam nossa mente. A ansiedade ou frustração gerada pelo não atendimento das listinhas que fazemos para nós mesmos provocam acidez estomacal e dificuldade da eliminação das toxinas”, alerta.

“Se não conseguimos falar sobre tudo isso,  fica aquele nó que a maioria de nós tem na garganta e que se traduz em ressentimentos e mágoas”, explica Lia. “Muitas vezes não com alguma pessoa específica. Simplesmente a não possibilidade dar conta de tantas demandas cria em nós um sentimento de frustração e de inadequação para viver. Isso se traduz em quadros depressivos, ansiedade crônica crescente, sintomatologia como o distúrbio do sono, as fobias totalmente irracionais que criamos e que começam a ter o rótulo de agorafobia –permeando o ambiente social enraizado em um modo de vida criado a partir desta sucessão de rupturas da biosfera.

A Fantasia do Isolacionismo e o Limite do Desejo

“A fragmentação, a separação, a possibilidade do isolacionismo, a individuação... tudo isso é uma fantasia da qual estamos começando a acordar”, afirma Lia. “Essa sociedade alimenta nossos desejos e voracidade em todas as direções, não apenas de alimentos, mas de coisas a serem pensadas e sentidas. Entretanto, tudo tem um limite”, constata. “Não adianta colocar as delícias mais extraordinárias diante de mim em uma mesa de café da manhã. Não é possível degustar tudo. Se ultrapassamos o limite do nosso corpo, mesmo que o alimento seja delicioso, ele se torna repugnante”, ilustra. “É isso talvez o que estamos começando a sentir com referência ao banquete de estímulos em que estamos imersos”, pondera.

Bacanal de Estímulos

“Tudo nos chama atenção. Tudo pede para ser usufruído. A publicidade ainda nos convence que nós merecemos tudo. Esse é o slogan mais frequente em todas as propagandas – Você merece”, alerta Lia. Ela afirma que deveríamos focar no encontro da nossa capacidade de limite. “É preciso adquirir a consciência de que de algumas coisas podemos usufruir, outras não, porque se tornam doença”. Lia diz que é preciso desmontar a arquitetura que privilegia os valores da acumulação e os valores do poder do domínio, da apropriação, da capacidade de comando e controle. “Essas ilusões são como um brinquedo que nos distraiu durante algum tempo mas agora está fazendo muito barulho, provocando muita fumaça, e piscando demais...”, ilustra.

O Tempo da Voracidade

A professora lembra que estamos todos envolvidos no mistério da vida. “O que eu vejo são os ancestrais dentro dessa cultura, sempre me acompanhando na minha trajetória em algo que eu não enxergo. Culturas ancestrais viam o tempo como a perpetuação de ritmos. Tanto a natureza quanto a cultura criavam possibilidades que ainda não se tinham esgotado. Quando fatiamos o tempo e fazemos dele uma moeda de troca, quando o precificamos na ação profissional, sem sombra de dúvida criamos outra cartografia temporal. Mas o fato é que temos um único tempo e ele não pode estar a disposição das infinitas demandas as quais cada um de nós se submete. Eu chamo isso de o tempo da voracidade”, descreve Lia.

Ser Humano Integral - o Telhado, a Cozinha e o Porão do Corpo

“Não podemos viver apenas no telhado de nós mesmos, cultivando o intelecto, sem manter a cozinha ou no porão organizados - sem cuidar da nossa saúde, ou atentar para nosso corpo. Não seremos sustentados”, alerta Lia Diskin. “Nossa linguagem nos faz distinguir corpo de mente e espírito. Mas sabemos que nada disso existe de maneira isolada. Não se pode criar possibilidade de futuro a não ser pela integração”, propõe. A professora afirma que, como criaturas, estamos dentro de um sistema de vida e que o caminho para a saúde é a busca pelas medicinas integrativas e complementares.

Em 2006 o Governo Brasileiro abriu a portaria 971 que aprova a Política Nacional de Práticas Integrativas e Complementares (PNPIC) no Sistema Único de Saúde. As iniciativas nesse sentido crescem a cada ano no país. Os Estados Unidos já tem avançado na questão. “Desde a criação da primeira faculdade que propunha programas de medicina integrativa, na Califórnia, se originaram 21 cursos, e já se formaram milhares de profissionais”, comemora Lia. “Isso gera novas possibilidades e novas janelas, onde saberes tradicionais – tradições de cunho indiano e chinês - medicinas populares que durante gerações deram conta do dia a dia das necessidades das comunidades - de algum modo se veem legitimados ”, afirma.

Vinculação Afetiva

Lia conta que uma das observações sobre resiliência humana foi realizada no processo de separação e guerra civil da Bósnia Herzegovina. “Muitas crianças ficaram órfãs. Eram tantos que com o tempo perceberam que o alimento e abrigo que os orfanatos lhes proporcionavam não eram suficientes para mantê-las vivas. Elas pegavam doenças que não eram graves, mas faleciam. Os índices de mortalidade eram muitos significativos. A rotatividade dos profissionais e voluntários era grande. Tais crianças não tinham vinculação afetiva. Isso é vital para a saúde de todos nós”, alerta.

Nutrição Afetiva e Alfabetização Emocional – Sintomas de Saúde

Quais são nossas expectativas, demandas e necessidades reais? Como nos relacionamos com os outros? “Nosso estado emocional, mental e físico cria um sistema, um ambiente ao redor de nós no qual se propicia conforto ou desconforto”, afirma a professora.

Lia exemplifica cotando que por décadas fomos convencidos que o arroz branco era o mais puro e que só muito tempo depois compreendemos que o integral era mais nutritivo. “Quando cheguei ao Brasil eu viajava 28km para ir a um posto adventista onde vendiam arroz integral. Três décadas depois, o encontramos em qualquer supermercado”, conta “O mesmo trabalho que foi realizado na área da alimentação, inicia hoje no âmbito da nutrição afetiva”, celebra.

Lia defende que não precisamos de tantos equipamentos, mas apenas de um melhor aproveitamento de nosso tempo. “O tempo é uma experiência que se vive não uma variável astronômica. Se vive o tempo mais plenamente quando se está presente. Quando se vive a qualidade da presença. Isso é fonte de saúde”, garante.

Ela explica que a alfabetização emocional consiste na aquisição de capacidades e competências de ver o que o outro experimenta e o que ele está sentindo. “Desenvolver a empatia é algo extremamente promissor. São sintomas de saúde. Como cultivar isso? Como nos nutrirmos mutuamente? Teremos que descobrir juntos. Não há uma receita pronta para o ser humano, alguém que saiba ou possa em última instância nos autorgar essa habilidade. Mas com certeza esse é o único caminho para a cura dessa miséria emocional que nos acomete”, conclui.