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Mauro Chies

03/07/2019

A Gestão dos Fracassos

Como nossos fracassos nos moldam, nos tornam mais resilientes e nos levam ao sucesso

No chamado Vale do Silêncio, no colo oeste do Everest, entre o campo 1 e o campo 2, a quase 6.500 m, eu despenquei para a morte Fracassamos infinitamente mais vezes do que vencemos. Na verdade os fracassos são as pontes para o sucesso Para algumas pessoas a minha expedição foi um fracasso pois não atingi o cume, para outras um sucesso pois retornei à casa ileso e para outras ainda, um milagre por ter escapado da morte certa Absolutamente todos os grandes avanços da humanidade são fruto de sucessivos fracassos, do aprendizado obtido com eles e de novas tentativas, mais acertadas.

Minha recente experiência na maior montanha do planeta, o Monte Everest, reafirmou meus mais profundos conceitos e convicções. Depois de estudar, planejar e preparar por mais de dois anos os custos, os possíveis contratempos, as dificuldades esperadas e as inusitadas, os enormes riscos (inclusive de morte); depois de treinar exaustivamente o corpo, a mente e o espírito para os sessenta dias de expedição num dos ambientes mais inóspitos do planeta e,  igualmente,  preparar minha família e minhas sócias para seguir sem minha presença física por estes dois meses (ou para sempre); ainda assim eu não poderia imaginar o que estaria reservado para mim na montanha e antes dela.

Quinze dias antes de embarcar para o Nepal rumo à aventura de uma vida, casei-me pela segunda vez. Nossas daminhas de honra foram nossas duas filhas dos casamentos anteriores, entre os padrinhos estava meu melhor amigo desde a infância e maior incentivador das minhas aventuras nas montanhas, ao lado dele o mais novo amigo, companheiro e guia de escalada no Everest. Celebração, jantar e festa concluídos, fomos todos para nossas casas e famílias. Na manhã seguinte fui surpreendido logo cedo pela notícia do falecimento repentino do meu mais antigo amigo e padrinho, que eu abraçara horas antes. A consternação cedeu imediatamente ao ver o nome dele no aviso luminoso da capela. Sim, era real. A alegria genuína de horas atrás dava lugar às lágrimas, igualmente genuínas, desesperadas. Ver a dor daquela família querida frente ao inexplicável destino do meu amigo tornou minha tristeza ainda mais profunda.

Uma semana mais tarde eu me encontrava na cerimônia de sétimo dia de seu falecimento, recebendo das mãos do seu pai as cinzas para serem levadas para o outro lado do mundo, para a montanha com que ele sempre sonhara. Uma missão ainda mais auspiciosa que a própria escalada que estava por vir. No dia do meu embarque, antes de ir para o aeroporto, fui com minha família visitar e despedir-me de minha mãe, que estava muito mal de saúde havia meses. Apesar do baixo nível de consciência dela naquele momento, causado pela sua enfermidade, percebi que ao tocar sua testa com minha mão seu coração disparou, um sinal claro para mim que ela estava ali e entendia o que viria pela frente, para ela e para mim. Fui-me embora depois de dar-lhe um pequeno beijo de despedida.

A viagem de milhares de quilômetros do Brasil ao Nepal durou mais de dois dias, entre salas de embarque e aeronaves. Ao desembarcar finalmente no aeroporto de Katmandu, capital do Nepal, liguei meu telefone celular enquanto preenchia a papelada de imigração. Alguns poucos minutos depois disso recebi uma ligação do Brasil, era a notícia, em primeira mão, do falecimento de minha mãe minutos antes. Por um segundo duvidei que aquilo estava acontecendo, mas a razão tomou as rédeas. Contei imediatamente aos meus dois companheiros de expedição o que havia acontecido e nos abraçamos sem dizer uma palavra sequer. Não havia forma de voltar a tempo para o funeral, não havia nada que eu pudesse dizer ou fazer. Depois de algumas horas decidi prosseguir com minha expedição, focar no esforço hercúleo pela frente e informei meus amigos e família de minha decisão.

No dia seguinte ao seu falecimento, no mesmo horário em que ela estava sendo cremada no Brasil, fui ao local mais sagrado do budismo fora do Tibete, a stupa de Boudhanath. Ao som dos mantras e sinos, em meio à fumaça de odor agradável dos incensos queimando ao ar livre, girei as dezenas de rodas de oração enquanto caminhava em sentido horário ao redor da imensa construção. Ao final de algumas voltas ao redor da stupa, sempre aos prantos, fui ungido por um monge, acendi uma vela e orei desejando-lhe paz. Saí de Boudhanath mais leve e certo de que deveria mesmo prosseguir. Precisava prosseguir, a fim de dar um pouco de sentido a todo esforço, a minha ausência e a todas aquelas dores na alma.

Os dias e semanas seguintes foram sendo progressivamente preenchidas com as tarefas da expedição, com as longas caminhadas em cenários deslumbrantes, com línguas, cheiros e sabores estranhos, subindo cada vez mais alto. Depois de chegar ao campo base, a 5.300 m, parti para a primeira montanha no himalaia. Escalei o monte Lobuche East, uma montanha de 6.100 m, antes de encarar o Everest de fato. Os ciclos de aclimatação foram sendo vencidos e, no terceiro e último deles, no chamado Vale do Silêncio, no colo oeste do Everest, entre o campo 1 e o campo 2, a quase 6.500 m eu despenquei para a morte.

Ao passar caminhando por uma pequena ponte de gelo e neve sobre uma greta (fenda profunda no gelo) de menos de um metro de largura, caminho de todos montanhistas que ali passavam, a mesma colapsou sob meus pés e eu mergulhei na montanha. Justamente na parte menos técnica e mais “tranquila" da escalada, fui engolido pela montanha sagrada dos budistas - o Everest é Sagarmartha para os nepaleses ou Chomolungma para os tibetanos. Cair em uma greta é sinônimo de morte em qualquer grande montanha do planeta e no Everest um episódio desses costuma ser associado ao desaparecimento do corpo em profundidades inalcançáveis e eu sabia disso. Imediatamente, vendo o azul da parede de gelo passar na minha frente como se estivesse em um elevador panorâmico descendo, serenamente pensei:

- Eu vou morrer agora. Minha família não me verá mais. As meninas crescerão sem minha presença. Lamentei resignado para em seguida fazer um pedido:

- Por favor meu Deus, que seja rápido. Não quero agonizar no fundo de uma fenda gelada e escura.

Neste momento senti o impacto do meu corpo sobre outra ponte de gelo, dez metros abaixo da superfície. Me vi deitado, sobre meu lado direito, em posição quase fetal, literalmente dentro da montanha. Não era minha hora. Fui resgatado rapidamente e evacuado de helicóptero dali para o hospital em Katmandu. Não vou esmiuçar aqui os detalhes do ocorrido, isso será feito de maneira apropriada em um livro que está a caminho, quero deixá-los com uma idéia do pano de fundo emocional de minha jornada e introduzir o assunto que é título dessa coluna. Imagine a torrente de emoções que experimentei nos anos de preparação, nas poucas semanas antes e durante a expedição, naquele segundo de queda e nas horas que se seguiram desde o resgate até no retorno à minha casa e à minha família. Imaginou tudo isso junto? Você pode estar fazendo neste momento algumas perguntas:

- Isso é loucura. Por que arriscar-se assim?

Entretanto, a pergunta que mais ouço é a seguinte:

- Pena não ter alcançado o seu objetivo. Vai voltar lá e tentar novamente?

Se você tivesse passado por tudo isso, ainda assim pensaria em voltar a essa ou outra montanha? Provavelmente não. Mas minha resposta é: provavelmente. Sim, eu penso que ainda vou escalar algumas montanhas antes de “pendurar as chuteiras”, enquanto tiver saúde e disposição, pois sei que cada um dos meus fracassos (ou insucessos) me torna mais sábio e resiliente. Se eu tivesse abandonado as montanhas no primeiro problema emocional ou físico, ou no primeiro cume fracassado, não teria escalado as montanhas que escalei e não teria vivido todas as experiências que vivi (e tenho a todas elas, com gratidão).

A noção de sucesso pode ser muito diferente para o mesmo episódio analisado ou vivenciado por diferentes pessoas. Para algumas minha expedição foi um fracasso pois não atingi o cume, para outras um sucesso pois retornei à casa ileso e para outras ainda, um milagre por ter escapado da morte certa. Para mim foi tudo isso e mais: aprendizado. O sucesso quase sempre é efêmero e muitas vezes nos deixa embriagados pela soberba e vaidade, cercados de pessoas igualmente vaidosas. O recorde de velocidade de hoje, amanhã já terá sido superado e seu antigo dono esquecido. O fracasso por outro lado é solitário mas edificante quando encarado de maneira inteligente e serena. Fracassamos infinitamente mais vezes do que vencemos. Na verdade os fracassos são as pontes para o sucesso.

Absolutamente todos os grandes avanços da humanidade são fruto de sucessivos fracassos, do aprendizado obtido com eles e de novas tentativas, mais acertadas. Eu gosto de referir-me a eles como "fracassos inteligentes” e eles são o oposto dos fracassos repetitivos, tolos, mais conhecidos como teimosia. Não aprendemos nada com o sucesso, ele apenas nos deixa momentaneamente anestesiados. O sucesso é o cume da montanha, mas assim como na montanha, você tem de descer de lá para subir outra. Então caro leitor, siga meu humilde conselho e abrace seus pequenos e grandes fracassos com sabedoria e serenidade. Saia da greta, escura e gelada, para a luz e siga em frente pois há muito o que viver, há muitas montanhas para escalar e muitos retornos à casa por vir. Um ciclo sem fim. Namastê.