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Mauro Chies

23/11/2018

Mont Blanc

A cidade de Chamonix, nos Alpes franceses, e sua maior montanha, o Mont Blanc (escalada pela primeira vez em 1786 e ainda sonho de milhares de montanhistas) são considerados o berço mundial do montanhismo 

Chegar ao cume da montanha parece encerrar a aventura mas na verdade é apenas o marco do meio do caminho. Uma escalada só pode ser considerada bem sucedida se você voltar inteiro de lá para casa Mauro, Rodrigo e Patrícia na chegada em Genebra Pouso no hotel em Chamonix Travessia do glaciar entre a Itália e a França Enchendo o tanque no Refúgio Cosmiques antes de partir para a aresta de Aiguille du Midi para decolar de parapente A caminho da decolagem Aclimatação no Refúgio Torino na Itália Encarando o Vallé Blanche

Minha história com essa montanha remonta a 2012 quando estive na cidade de Chamonix pela primeira vez, com a intenção de escalar o Mont Blanc e descer de lá voando. Naquela época minha experiência com montanhas era zero. Santa ingenuidade a minha pensar que poderia encará-la assim tão pretensiosamente. Naquela ocasião o tempo fechou totalmente e eu nem pude iniciar a aventura. O Mont Blanc deve ter pensado: “Volte aqui depois de crescer, menino”. Passaram-se seis anos e algumas experiências positivas e negativas nas montanhas ao redor do mundo, quando me dei conta de que estava lá novamente, olhando para ele com uma sede mais controlada, mais seguro que determinado, mais homem que menino.

Desta vez subiria o monte branco comigo meu amigo e guru Rodrigo Raineri (a quem acompanharei no próximo ano na escalada ao Everest), Fernando Boccia (escalador e atleta de aventura, amigo "instantâneo") e minha cara metade Patrícia Focchesato (membro mais jovem do grupo e a única sem nenhuma experiência de montanhismo). Nosso plano ambicioso: escalar o Mont Blanc pela “voie royale" em dois dias e descer do cume voando em nossos parapentes duplos.

Tal feito não é impraticável mas o esforço físico de levar mais de dez quilos extras nas costas até o cume de 4.810 m, sem a certeza de que ao chegar lá (se chegar) as condições serão mínimas para a decolagem, adiciona uma dose significativa de dificuldade técnica, tensão e incertezas ao já difícil percurso. Alguns dias antes do ataque ao cume a primeira surpresa do Mont Blanc se apresentou. O teleférico que nos levaria até Aiguille du Midi (3.800 m) próximo do Refúgio Cosmiques onde passaríamos duas noites aclimatando, estava em manutenção, fechado. O caprichoso monte branco havia nos preparado uma pegadinha ou estaria nos testando?

Ás pressas colocamos em prática o plano B: Cruzar o maciço do Mont Blanc por baixo, pelo túnel rodoviário de mais de 11 km, até a Cormayeur na Itália e de lá subir até o Refúgio Torino a 3.370 m para realizar esse ciclo importante de aclimatação a altitude. Passamos duas noites lá, treinando técnicas de autoresgate no gelo durante o dia e descansando a noite. Ah, “que gostinho de casa”, ver aquela confusão de italianos falando alto (gesticulando como se fossem brigar a qualquer momento) e saborear uma polenta com queijo e salame. Tivemos que recusar o vinho (uma pena) por razões óbvias, mas a volta pelo lado italiano do Mont Blanc foi inesquecível.

Era chegada a hora de encaramos a travessia de cinco horas do Vallée Blanche, imenso campo de gelo cheio de gretas potencialmente fatais no meio do maciço de montanhas. Saímos da Ponta Helbronner, na Itália até Aiguille du Midi no outro lado, na França (onde deveríamos ter iniciado), para, de lá, descermos voando de parapente até Chamonix, nossa base. Sabíamos que teríamos apenas duas opções, decolar de lá ou fazer todo o caminho de volta a pé pela Itália. Para complicar ainda mais as coisas, no meio da travessia Patrícia começou a apresentar dor ocular e perda súbita da visão em um dos olhos (sorte dela eu ser oftalmologista). Chegar logo ao refúgio Cosmiques era absolutamente necessário para que eu pudesse avaliar melhor a situação dela.

Passamos cerca de uma hora no refúgio pratimamente vazio. Patrícia ficou no escuro total dentro dentro de um dormitório recuperando-se para logo em seguida devorarmos uma omelete às pressas enquanto nos equipávamos para mais uma hora e meia de caminhada até a aresta de Aiguille du Midi para decolar. Na chegada o monte branco desafiou-nos mais uma vez, fechando com nuvens o local da decolagem. Sabíamos que alguns metros a frente da montanha havia sol e tempo bom mas a decolagem da alta montanha sem vento e sem visibilidade nenhuma era tarefa para gente experiente, acima de tudo com sangue frio.

Nós pilotos/montanhistas (Rodrigo e eu) sabíamos que seria possível e seguro, desde que nossos passageiros fossem plenamente confiantes em nosso julgamento e ações. Um passo hesitante na direção errada e nossa decolagem se transformaria em um pesadelo trágico. O momento exigiu sincronismo, confiança total no parceiro e muita, muita sorte. Decolamos primeiro (eu e Patrícia) no vazio da montanha para segundos depois ver abrir-se a nossa frente uma paisagem cinematográfica. Todo o verde do vale de Chamonix aos nossos pés cercados de montanhas brancas e de nuvens entremeadas pelo um céu azul e o sol dos Alpes.

Trinta minutos mais tarde pousamos em segurança ao lado do nosso hotel na cidade e conseguimos acompanhar de camarote a repetição da façanha pelos amigos Rodrigo e Fernando que decolaram cerca de trinta minutos depois. Comemoramos todos o sucesso da empreitada e terminamos o ciclo de aclimatação de uma forma mais que inusitada, mas com “chave de ouro”. Imagino que Mont Blanc passou a nos olhar de forma diferente daquele dia em diante, bem como nós, a ele.  

Nossa incursão no campo de gelo do maciço do Mont Blanc nos credenciou para uma tentativa de cume com muita confiança. Aproveitamos nossa última parada em Chamonix para descansar e organizar o equipamento a ser levado para o alto da montanha. Nos livramos de todo o peso que não fosse absolutamente indispensável. O equipamento de vôo já representava um excesso de peso em si. Uns gramas aqui, outros ali e acabamos aliviando alguns quilos das mochilas. No dia seguinte deixamos o conforto do hotel e pegamos um ônibus de linha que nos deixou em Les Houches, de onde tomamos um teleférico até Bellevue, a 1.794m. Embarcamos em um pequeno trem turístico que nos deixou minutos depois no fim da linha, em Nid D’Aigle, 2.380m, onde a verdadeira escalada iniciou.

Caminhamos por algumas horas por trilhas bem marcadas, passando por turistas menos equipados, corredores de aventura, alpinistas voltando do cume e por algumas cabras das montanhas (Chamois), todos indiferentes a nossa presença, até chegarmos ao refúgio Tête Rousse, a 3.187m. Esse refúgio rústico e bem acessível a qualquer montanhista seria nossa última parada antes de enfrentarmos a travessia do temido e perigoso Grand Couloir, paredão de rocha onde pedras de vários tamanhos caem sobre um corredor estreito e podem atingir em cheio os alpinistas.

Descansamos no refúgio repleto de pessoas de todo o mundo. Sentamos à mesa para um jantar rústico com dois russos que também estavam em busca do cume. Uma placa na copa deixava bem claro o espírito do lugar: “No WIFI, no eletricity. All people smile in the same language” (Sem wifi, sem eletricidade. Todas as pessoas sorriem na mesma língua). Depois de uma noite de sono, na manhã seguinte encaramos a grande parede de rochas até a próxima parada.

A travessia do Grand Couloir impressiona muito à primeira vista e você começa se perguntar que diabos está fazendo ali, lembrando que aquela é a parte “fácil" do rota. É possível ver, lá no alto, pendurado na borda da encosta íngrime a próxima parada, um ponto brilhante parecendo um disco voador pousado na montanha, o surreal refúgio Goûter a 3.683m. Terminada a parte íngrime e rochosa chegamos a um novo cenário, neve e gelo, branco total, nada de pedras.

Colocamos nossos "crampons" (acessório metálico com pontas para a sola das botas) e nos "encordamos" (nos amarramos uns aos outros). Para mim essa sempre é a parte mais divertida da escalada pois realmente nos sentimos responsáveis uns pelos outros, um time. Depois de algumas dezenas de metros chegamos ao refúgio Goûter e nos instalamos para comer e descansar. Próxima parada: cume.

A curta noite de sono antes de um ataque ao cume da montanha sempre é interminável. As poucas horas de repouso antes de deixarmos o conforto do refúgio parecem infindáveis, os minutos parecem horas. Por volta da meia noite o silêncio dos dormitórios começou a ser quebrado pelo som dos alpinistas acordando, equipando-se, indo em direção ao refeitório para um café da manhã rápido e fora de hora.

Apesar de todos esses sons não se ouvia muito as vozes dos poucos que atreviam-se a conversar baixinho. O clima de concentração, de final de campeonato, imperava absoluto. Depois dos preparativos saímos em fila indiana, amarrados uns aos outros, em silêncio, concentrados apenas em pisar no lugar certo, no meio da escuridão da madrugada gelada. O céu no alto das montanhas é sempre algo magnífico de se ver. Sem a interferência das luzes da civilização, no ar seco e limpo, o firmamento é divinamente estrelado. Quando os primeiros raios de sol chegam, primeiro à montanha, as cores são igualmente divinas.

Já no meio de nossa acensão o tempo fechou e o vento forte trouxe nuvens para a parte alta, tornando o avanço mais difícil. Fizemos uma parada estratégica no último abrigo do caminho, o refúgio Vallot a 4.360m, para que a Patrícia recuperasse um pouco as forças. Este refúgio é apenas um "container" metálico no meio da rota, usado como abrigo em casos de emergência. Meia hora depois saímos de lá, no meio da tormenta, e só paramos no cume do Mont Blanc. 

Em meio a nuvens menos densas, que deixavam transparecer o azul do céu acima de nós, nos abraçamos e as lágrimas foram inevitáveis. Sentamos no gelo firme do cume e começamos a avaliar o cenário. Nosso plano inicial sempre fora descer de lá voando com nossos parapentes mas a direção e intensidade do vento não eram favoráveis, sem contar com a absoluta falta de visibilidade. Depois de alguns olhares cúmplices, avaliamos que um vôo às cegas já fora suficiente, não precisaríamos arriscar mais um. Depois da pausa para lanches, fotografias e filmagens, iniciamos nosso caminho de volta.

Chegar ao cume da montanha parece encerrar a aventura mas na verdade é apenas o marco do meio do caminho. Uma escalada só pode ser considerada bem sucedida se você voltar inteiro de lá para casa. Dizemos sempre que subir ao cume é opcional mas descer de lá é obrigatório. Encaramos a descida toda até o refúgio Tête Rousse em apenas um dia, no mesmo longo e extenuante dia de cume. No dia seguinte deixamos o refúgio e voltamos tranquilos, em segurança para nosso hotel em Chamonix onde ainda tivemos a sorte de fazer um voo da montanha ao lado, Plan Praz. Missão mais que cumprida, com previsíveis imprevistos, dificuldades, emoções fortes e principalmente com segurança. Além das belas cenas que presenciamos ficarão para sempre a amizade e o companheirismo entre nós quatro. O Mont Blanc agora é nosso.