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Prof. Morgana Säge

06/07/2020

A Melhor Face da "Quarentena"

Vivemos momentos que possibilitaram a muitos enxergarem a si mesmos, repensarem suas vidas, ressignificarem as relações familiares  

"O que realmente importa?" "A relativização do tempo foi usufruída de forma positiva, produzindo emoções e memórias, e não necessariamente bens materiais ou serviços que o trabalho e a formação educacional convocam"
"Em três décadas, o mundo virtual ressignificou todas as relações humanas e se tornou peça-chave para o enfrentamento desta incomparável crise sanitária"

O isolamento social provocado pela pandemia do coronavírus proporcionou uma espécie de retorno compulsório das pessoas para seus “lares”: tanto o lar no sentido literal, a casa, quanto aquele no sentido metafórico, o corpo e a mente. Ao se verem diante dessa nova realidade “ensimesmada”, muitas pessoas, que têm a oportunidade e o privilégio de fazerem isso (é claro), conseguiram usar o seu tempo de outras formas: leram o livro que ficou anos na estante guardado, assistiram a uma live inusitada no Instagram, dormiram um pouco mais em alguns dias de semana, adaptaram os exercícios físicos da academia para a sala de estar, organizaram os armários de roupas, “maratonaram” séries, cozinharam para a família, enfim, promoveram algumas ações que, inéditas ou não, não constituíam o seu dia a dia. 

Para mim, esses movimentos são a melhor face da “quarentena”, pois possibilitaram a muitos enxergarem a si mesmos, repensarem suas vidas, ressignificarem as relações familiares. Não sei se esse momento será suficiente para que tais hábitos sejam mantidos quando a “quarentena” terminar, mas essa construção (mesmo que momentânea) já mexeu com a perspectiva de vida de muita gente. O isolamento permitiu às pessoas se perguntarem: “o que realmente importa?”, e essa riqueza foi possível porque a relativização do tempo foi usufruída de forma positiva, produzindo emoções e memórias, e não necessariamente bens materiais ou serviços que o trabalho e a formação educacional convocam.

Esse momento histórico também provocou nas pessoas a valorização do mundo analógico, ou seja, da vida real. O que vemos hoje é um excesso de ofertas e demandas do mundo online, afinal muitos transferiam o contato pessoal, as fontes de informação e as ocupações para o ambiente digital. No entanto, essas mesmas gerações que se viram imersas no virtual estão ficando, em algum momento, saturadas das telas. A televisão, o computador e até o smarthphone podem começar a ficar de lado, sobretudo quando o isolamento terminar. Acho que todos estão muito ansiosos para esse momento (e chovem memes na internet expondo isso), uma vez que a maioria das pessoas sente falta do abraço, da risada, do contato físico, do “rolê” (como dizem os jovens) e, até, da aula presencial. Talvez essas pequenas ações, que, enquanto eram promovidas em abundância até passavam despercebidas, hoje fazem parte dos anseios para a pós-quarentena.

No entanto, é imprescindível frisar que esse novo sujeito, resiliente e aprendiz, que emerge da crise, só é foi possível para aqueles cujos compromissos financeiros e de sobrevivência estavam minimamente garantidos: não há aprendizado ou aproveitamento quando os boletos se acumulam na gaveta, a geladeira vai ficando vazia ou o emprego foi perdido. Esse momento também não pode ser vivido plenamente por aqueles que já estava doentes física ou mentalmente. Esse processo de empatia, de solidariedade, de compreensão das diferentes realidades sociais também tem sido um efeito visto para além do maniqueísmo político, do ambiente de ódio e das discussões desnecessárias que o mundo (sobretudo o brasileiro) imergia. Mesmo com muitas preocupações e realidades diferentes, pode-se ver solidariedade seja em ações para pessoas em situação de rua, seja para angariar EPIs para algum hospital.

No ambiente educacional, os efeitos da pandemia estão sendo vividos por todos. Nas escolas, nos cursos pré-vestibular e nas universidades, a digitalização do acesso ao conhecimento, “da noite pro dia”, se impôs como uma ferramenta ubíqua e única para dar continuidade aos estudos. Fico imaginando se essa pandemia tivesse acontecido há 30 anos, lá pela década de 90, quando eu frequentava a escola: a internet era discada e via cabo; poucas famílias tinham um computador (e, quando ele existia, era compartilhado por todos); não havia smarthphones, no máximo alguns aparelhos da Nokia que, basicamente, enviavam “torpedos” e estabeleciam ligações telefônicas. Em três décadas, o mundo virtual ressignificou todas as relações humanas e se tornou peça-chave para o enfrentamento desta incomparável crise sanitária. 

É claro que essa revolução tem um custo: nossas retinas estão esgotadas de telas, nossos corpos sofrem a sedentarização forçada e nossas mentes estão ansiosas, entediadas, irritadas. No entanto, nossa geração precisa entender os privilégios de enfrentar esse momento dentro de casa, cheia de recursos e possibilidades de comunicação e acesso à informação. 

Entendo o cansaço de meus alunos, por exemplo, assistindo a quase 6 horas diárias de videoaulas e lives do nosso curso, mas lembro-lhes que essa oportunidade de continuar estudando nos mantém ativos, preparados, vitalizados e esperançosos. Entendo que a aula online não é a mesma coisa que o “olho no olho” e a sincronicidade de aprendizado que uma sala presencial possibilita, mas há um resgate profundo da capacidade de estudar individual, ou seja, da autonomia de cada um. Entendo também que acordar e ir para o computador (a dois metros da sua cama) não é bem “ir à escola ou ao cursinho”, mas é esse instrumento que nos possibilita dar “bom dia” para professores e colegas e perceber que não se está sozinho.

Estamos enfrentando o primeiro grande desafio do nosso século: somos sujeitos históricos reconstruindo a nossa própria existência. Contudo, apesar de tantos desafios, sou otimista e acho que sairemos dessa fase muito melhores: o segredo é tentar sempre encontrar saídas percebendo os privilégios de viver este momento com as condições que temos. Se todos conseguirem olhar para além das angústias e dos desafios que essa pandemia impôs, talvez seja possível construir um novo mundo, uma nova realidade, em que as pessoas, ao cuidarem de si e dos seus desejos, possam ser mais felizes.